Discussão Dorense

Discussão Dorense

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

BOI DA PROMESSA – PARTE I






- Se estivesses mesmo, pai Francisco, faria o que estou te pedindo...

- Mas, mãe... Como irei arrumar isso agora?
- Ai... ai...
- Tá doendo? Vai nascer?
-Quero agora porque não quero ver meu filho nascer com cara de língua de boi.
- Mas já é madrugada...
- Quer ver nosso filho com cara de boi?
- Não! Deus me livre!
- Então consiga pra mim. Eu não tenho culpa de querer comer língua de boi. Bateu um desejo de repente e pronto.
- Não serve uma galinha?
- E o que galinha tem a ver com boi? Vá-se agora, homem. Senão nosso bebê nascerá um bezerrinho desmamado.
E lá se foi pai Francisco seguindo mata fechada, encoberto pelo manto da escuridão. Os sapos coaxavam na beira da lagoa, formando na floresta seu canto clássico do norte do Brasil. Esse senhor de média idade seguia pela estrada afora, intencionado chegar em alguma venda mesmo que fechada naquela hora da noite. Depois pensou muito e refletiu:
- Como saberei se é venda se está fechada? Se ao menos encontrasse um boi por aqui... Não seria certo, mas como deixarei a mãe com desejo de língua de boi? E se meu filho nascer um bezerrinho desmamado? Não... Acharei um boi nem que tenha que atravessar o rio Amazonas...
Como era muito pobre, não teria nem uma galinha caso ela tivesse desejo. De certo modo, de uma maneira ou de outra, teria de sair do mesmo jeito à procura do saciar do desejo de mainha. Mas uma galinha seria muito mais fácil de se pegar, agora uma língua de boi...
Lá se vai ele, caminhando estrada adentro. Passos lentos, olhar vivo e ouvidos aguçados. Na floresta de madrugada é perigoso: tem cobras, morcegos e outros bichos nada amigáveis.
Sair naquele horário foi um enorme perigo para pai Francisco. Seu amo não gostaria nada de ver um escravo seu rondando fora da fazenda. Tudo indicaria uma fuga e isso não traria benefícios para ele e nem para mãe Catirina. Seria castigado e seu filho correria o risco de não nascer. Pensou painho novamente e voltou para a senzala.
- Trouxe pra mim? Tô com fome...

- Sabe o que é, eu... eu...
- Não me diga que demorou tanto pra voltar com as mãos abanando?
- Não é isso, mainha. Fiquei com medo de trazer ele cá pra dentro porque tá tudo sujo de sangue e pensei que tu te assustarias. Então deixei o boi fora da senzala pra o sinhozinho não ver. Mas vou lá fora agora e trarei a língua dele para lhe matar a vontade.
Pai Francisco não teria escolha. Pensara nessa alternativa antes, mas queria ter outra opção, uma que deixasse menos zangado o amo da fazenda. Mas seu medo do filho nascer um bezerrinho era mais forte e, sem mais opções viáveis, saiu correndo, pulou a cerca do curral do sinhozinho da fazenda, escolheu o boi mais bonito, matou-lhe a pancadas de picareta bem no meio da cabeça e com uma faca bem amolada, arrancou-lhe a língua.
Com um saco de trigo, limpou todo o sangue das mãos e embrulhou a língua do boi para levar à mãe Catirina.

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Pela manhã, sinhazinha, com toda sua beleza de flor de idade, amarrou o chapéu bordado com flores de cetim à cabeça e abriu sua sombrinha toda confeccionada por uma artista adequado do ramo. Com certeza, era algo muito valioso, pois era muito bem talhada e envolve uma mão de obra minuciosa, não próprio de escravos. Devia ter vindo da Europa.
Logo depois do café, saiu às pressas para cumprimentar seu boi preferido.
- Minha querida, cuidado com seu vestido. Não vá sujá-lo. Custou muito caro a seu pai!
- Sim, minha mãe. Juro que não o sujarei.
Entrando de qualquer maneira no curral e lambuzando de barro toda a borda inferior do vestido, sinhazinha foi gritando o boi desde a porteira. Não se ouviu seu mugido como era o costume diário e nem suas cabeçadas na parede. Sinhazinha sempre entendera isso como um “bom dia”.
- Boi, boi, boi, boi, boi, boi...
As vacas, mascando seus capins diários, mal levantavam a cabeça para acompanhar a filha do amo delas.
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Sinhazinha se preocupou. Virou-se para trás e percebeu pegadas na porteira. Os estábulos se espalhavam em duas fileiras retas, colocando-se à esquerda e à direita por ali adentro, distribuindo-se uniformemente, dando vista para dentro dos estábulos logo ao chegar na porteira do curral.




Sinhazinha não via seu boi predileto, aquele que ela amava de todo coração. Seu “alojamento” com certeza estava vazio. E uma coisa a mais lhe deixava ainda mais perplexa: muitas pegadas no chão barrento do curral levava ao estábulo do boi.
Protegida pelo sol com sua sombrinha ornamentada, seus cachos loiros por debaixo do chapéu voaram ao vento quando correu para ver o que aconteceu com seu boi. Suas luvas brancas que protegiam suas mãos suaves e bem cuidadas caíram no barro quando ela abriu o estábulo.
- Pai, pai, pai... – gritava ela frenética, desconsolada, enraivecida e suicida – vem aqui, vem aqui. Olha meu boi, olha meu boi...
Todos os capitães da fazenda chegaram desesperados e desorientados. O que aquela menina viu pra ficar daquele jeito?
- Olhem meu boi, olhem meu boi, ah, meu boi querido, mataram ele.
Quanto todos se amontoavam pra ver o acontecido na porta do estábulo, chega o sinhozinho com espingarda à mão, lívido como uma cera.
-Que é que foi menina? Por que tiraste meus empregados de seus afazeres?
- Olha pai o que fizeram com meu boi, olha só pai. Que maldade fizeram, que maldade. Porque logo o meu, logo o boi mais bonito da fazenda?
Sim , aquele boi branco que um dia antes mostrava sua potente e exuberante beleza, agora tinha um furo na cabeça, a boca escancarada e sem língua, banhado com seu próprio sangue esparramado no chão barrento do estábulo.
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- Quero o culpado antes do entardecer, senão a cabeça de vocês é que vão rolar... Mas aquele capitão que me trouxer o desgraçado, serei generoso com ele.
Todos gostariam da generosidade do sinhozinho. Geralmente era um cargo maior com melhor salário ou um dinheiro extra. Todos os sete capitães a serviço do amo da fazenda se espalharam rapidamente, pulando as cercas do curral atrás do dito cujo. Mas um infeliz, tropeçando num barro seco, caíra de joelhos no chão, atrasando sua procura e causando-lhe um sentimento de que tudo se perdeu, que sua procura acabara ali.

Ao se levantar calmamente e tentando limpar os joelhos da calça surrada, viu marcas diferentes no barro seco do curral, algo totalmente diferente das botas dos capitães. Eram marcas de pés descalços. Sim, sentira que sua caçada ainda não terminara. Talvez um escravo teria pulado a cerca pela madrugada e matara o boi. Mas ainda não entendera porque lhe arrancara a língua.
- Qual o negro que teria essa audácia de matar o boi preferido da sinhazinha? – pensara ele.

Arrumou sua espingarda como de costume, e, sem pressa e com muito cuidado pra não desmanchar as pistas, foi seguindo as pegadas.
O capitão ficou ainda mais furioso ao ver onde elas davam: na senzala da própria fazenda.
- Um escravo daqui mesmo fez isso?

Correu até ela e chutou a porta violentamente. Todos os escravos estavam trabalhando com exceção de um: mãe Catirina. Ela estava deitada, pronta pra dar à luz e ao ver o capitão, sentiu muito medo e as contrações começara. Estava na hora do parto.
No chão, ao lado da cabeça de mãe Catirina, um prato de barro estava todo sujo com restos de comida e um molho escuro.
Desconfiado, perguntou a escrava o que era. Ela, com fortes dores, não respondeu. Pai Francisco lhe havia contado a verdade de que a língua do boi era o da sinhazinha da fazenda. O capitão então tomou o prato, provou a carne e teve certeza que aquilo era a língua do boi do curral.
Jogando o prato no chão, espatifando-o e correndo até a fazenda, o capitão informou ao sinhozinho onde achou a língua e que o provável matador do boi era o Pai Francisco.

Sabendo da notícia, o escravo foi chamado pelo dono da fazenda. Sinhazinha estava com ele para saber quem era o terrível assassino que acabara com a graça de sua vida.
- Porque fez isso, seu insolente? O que pensa que é? Não passa de um escravo que só serve pra trabalhar!
- Fiz isso porque mãe Catirina tinha desejo de comer língua de boi e eu tive medo do meu filho nascesse com cara de bezerrinho desmamado! Me perdoa, sinhozinho, não irei mais fazer isso!
- E quem disse que escravo é gente pra ter perdão? E quando escravo faz uma coisa errada, é uma vez só. Antes nascer com cara de boi do que escravo. Um boi tem muito mais serventia. Uma surra de setenta chicotadas e depois verei o que fazer contigo.

O filho de pai Francisco e mãe Catirina nasceu à tarde, com todo apoio dos escravos parteiros da fazenda, mas ao terrível som de setenta chicotadas que se espalhava por toda a fazenda.
Nessa noite, sinhazinha não conseguia dormir. Estava triste por seu boi e aborrecida pela covardia com pai Francisco. Também teria medo se seu filho fosse vítima de seu desejo e nascesse com cara de bezerrinho desmamado...

BOI DA PROMESSA - PARTE II



Na prisão de escravos, no porão da fazenda onde a porta era externa, sinhazinha de manhã bem cedo foi visitar pai Francisco.

- Foi muito ruim o que fez com meu boi. Você não tem coração não?

Gemendo pela dor irremediável nas costas, ele não teve dúvidas ao responder.

- Sinhá, não fiz por mal. Levei pra minha senhora comer. Ela teve desejo de comer língua de boi e tava na hora do neném nascer. Não queria que ele nascesse com cara de boi!


- Mas logo o mais bonito? Não tinha outros por lá?

- Ele me chamou a atenção porque era o mais bonito. Eu vi ele de longe e fui correndo pegar sua língua. Minha senhora estava sentindo dores naquela hora e não pude ficar escolhendo muito.

Chorando, sinhazinha suplica ao escravo:

- E como EU fico? Tô chorando por ele há quanto tempo... Sinto muito a falta dele, ele era tudo pra mim. Outro boi nunca será a mesma coisa e também nem quero outro. Eu exijo o meu boi de volta!

Pai Francisco se aproximou bem da porta da cela e a encarou bem nos olhos.

- Para nós escravos, isso tem como acontecer.

O rosto de sinhazinha se iluminou.

- Como?

- Nossa gente diz que se é capaz de reviver uma coisa que morreu. Ouvi casos de que pajés das tribos dessa região trouxeram a vida novamente a animais mortos por caçadores maus. São muitas histórias que escuto desde que sou criança.

Sinhazinha, um pouco incrédula mas esperançosa, insistiu um pouco no caso.

- Me conta onde encontro um desses pajés que te tiro dessa prisão.

Sem interesse em ser libertado e convencido da paixão da sinhazinha pelo boi, pai Francisco revela o paradeiro do pajé.

- O que fica mais perto é o pajé da tribo Parintintins, a três dias daqui.

Sinhozinho demorara dois dias para chegar a tal tribo indo a cavalo. Acompanhado de seus capitães armados às escondidas e de sua filha, não hesitara em atender ao pedido de sinhazinha. Ele também gostava muito daquele boi e faria tudo para tê-lo de volta, nem que para isso custasse acreditar nessas besteiras de rituais xamânicos.

O pajé, assustado com a visita, pede calmamente para que sinhozinho se explique.

- Meu escravo matou o boi mais bonito e querido da fazenda e nós queríamos tê-lo de volta. Acredito que você possa fazer isso, trazer sua alma de volta ao seu corpo. Minha filha não se agüenta de angústia e eu também estou em suplício.

Pajé não olha o fazendeiro mas encara sinhazinha. Chega bem perto dela e comprime seu rosto em suas mãos ásperas. Aproximou seu rosto bem perto do dela, observou os olhos inquietos da moça e não duvidou. Ela realmente gostava do boi.

Deu ordem a alguns escolhidos dos índios da tribo para que o acompanhassem e o ajudassem no ritual necessário para trazer o boi de volta à vida.

- Só te digo uma coisa, senhoria: o espírito poderá querer uma forma diferente em vida, já que ele se foi e nós o traremos de volta. A senhora ainda assim quer o boi?

- Quero ele de volta nem que volte em forma de cobra gigante.

Caminharam de volta à fazenda, levando o caminho de volta três dias.

O boi estava tampado por vários sacos de milho no centro do curral.

Era tardinha e o pajé não queria perder tempo. Mandou que seus acompanhantes o retirassem do curral e o botassem um pouco à frente da porteira.
Levantou uma enorme fogueira e os índios fizeram uma roda em volta dela. Começaram suas danças e cânticos, batendo palmas e o pé forte no chão. O pajé, com as costas virada para o curral, sentou-se no chão e cruzou as pernas. Respirou profundamente e fechou os olhos. A dança dos índios se intensificou, as palmas cessaram e as batidas dos pés ficaram mais fortes, acelerando o ritmo da dança. A fogueira se expandia aos lados e para cima. O contato estava
querendo se estabelecer: o xamã buscava a alma do boi.

Sinhazinha e o amo estavam atrás, abraçados um ao outro. O boi estava pouco à frente do pajé, que estava intacto, feito árvore. Os índios não paravam: os cantos se tornaram mais fortes, naquela linguagem indescritível. Não era o idioma indígena de costume deles. Percebia-se a diferença no sotaque e do movimento dos lábios.

Tudo se silenciou de repente. Pajé disse:

- Mais paciência, encontrei o espírito da cobra grande e ela me dirá onde encontrar o boi. Ele está perdido no mundo das almas dos animais.

Fez silêncio e os cânticos voltaram ao normal. Tudo era muito sincronizado: com certeza os índios também estavam no mundo dos espíritos dos animais juntamente com o pajé.

Os índios pararam novamente e a fogueira diminuiu seu fogo. O eco do silêncio encheu a fazenda.

O pajé se levantou calmamente, ajuntou as pernas e levantou os braços ao nível do peito. Abriu os olhos e sinhazinha percebeu que estavam totalmente brancos. Abraçou seu pai com mais força e teve medo.

- Tragam o boi para mais perto. Achei seu espírito. Convenci-o a ficar e trazer alegria para essa família novamente, felicidade que poderá ser eterna.

Os índios trouxeram o boi com certa dificuldade pelo seu tamanho (eram cerca de uns vinte), e o botaram defronte as pernas do xamã.

Com os braços à altura do peito e as palmas das mãos viradas para

baixo, balbuciou algo inaudível e todos os indígenas responderam em uníssono, fazendo tremer sinhazinha.

- É chegada a hora! Mais para longe, todos! Ele está chegando.

Todos os índios se afastaram, sinhazinha e seu pai ficaram ainda mais longe.

Deu-se um último grito e o boi, deitado no chão, começou uma branda levitação. Os olhos da sinhá moça se encheram d’água.

- Ele vai voltar, pai!

O boi se levantou mais e uma luz muito forte o envolveu. Todos tamparam os olhos para não se cegarem. Mas ela foi ficando mais fraca aos poucos ao ponto de ter possibilidade de poder ver o que se sucedia. A luz, que ainda brilhava, deu lugar a um pequeno cometa feito de luz florescente, que veio circulando desde o rabo do boi até sua cabeça, deixando rastros de luz cair sobre seu corpo.

Ouviu-se um estampido. O boi caíra de repente. Mas o barulho não correspondia ao seu peso: parecia uma coisa bem mais leve.

Todos os presentes acharam aquilo surpreendente. O que o espírito do boi resolvera fazer? Todos chegaram mais perto e o boi se levantou desesperado do chão, dando cabeçada nos índios e nos capitães que chegaram curiosos naquele momento.

Sinhazinha veio correndo e pulou de felicidade. Pulou muito mesmo. Apaixonou por aquilo que via. Mostrou-o ao seu pai entusiasmada, que também não acreditava em seus olhos.

O boi, agora que se apresentava feito de pano, pano muito fino, mais fino que todos os panos europeus, uma branco muito mais branco que as nuvens do céu e que também apresentava um coração muito vermelho na testa no lugar da ferida, veio correndo ao seu encontro, mugindo feliz. No outro mundo não encontrara uma ama como aquela. Sinhazinha o abraçou carinhosamente, chorando muito, passando a mão sobre aquele pano, muito surpresa com aquela manifestação do pajé.

- O espírito escolhe. Ele viu sua felicidade aqui ao seu lado, sinhá, e não quis abrir mão dela nunca mais. Boi feito de pano não morre.

Pai Francisco foi solto e participou da grande festa que o sinozinho dera naquela noite. Muita dança, muita música e muita gente dançando em volta do boi, que era o centro da festa e das

atenções. Mãe Catirina pode mostrar o filho ao seu marido e comemorar junto a festa do Boi da Promessa do pajé.
















(Baseado na lenda do boi-bumbá, que inspira toda a festa de Parintins no Amazonas.)

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

CARTA DE ALERTA




Eu ainda não consigo entender a vida. É a segunda oportunidade que dou a ela, mas seu semblante obscureceu e não se preserva como eu quero. Como nós queremos. Logo quando achei uma maneira de dar vida novamente, ela não faz questão de desejar a si mesma. Porque tem de ser assim? Pior sou eu, tentando driblar o infortúnio do destino. Infelizmente, tem de ser assim, não tenho escolha. Como disse meu amigo... Sinto saudades dele... Como pude lhe dar ouvidos? Agora não adianta chorar... Estar junto à morte e à vida é a maior desgraça de um ser humano. É certamente muito melhor lidar com uma ou com a outra. Com as duas, é contra a natureza, é impossível.


Crandall, que Deus o tenha, descansa na verdadeira paz no verdadeiro cemitério. Esse sim, descansa e que sua mulher lhe faça companhia onde ele estiver. Meu Deus... Isso tudo é minha culpa... Porque fui lhe dar ouvidos? Porque não deixei Gage em seu descanso? Agora seu corpo enterrado no porão me dá uma tristeza indescritível, de chorar toda vez ao olhar aquela porta amarelada. Dentro de casa o cheiro insuportável da minha mulher fica impregnado nas minhas roupas e nas minhas narinas. Como pude ser tão egoísta? Querer tudo pra mim e não pensar na ordem natural das coisas? Como pude eu, como médico, atrapalhar a linha do tempo e brincar de Deus? Que desespero... Eu grito muito, mas, do que adianta gritar? Estou com medo de Rachel, me ameaçando cada vez que me vê jogado no chão.

Meu uísque acabou... Tenho de pegar mais... Oh, não! A vadia quebrou todas as garrafas... Sem ele não posso viver... Escuto as risadas dela: “Não me queria de volta, amor? Porque me rejeita? Estou na cama, venha fazer amor comigo! Hahahahahaha!” Ela não me deixa em paz! Que nojo! Seu cheiro fica na casa toda ao mesmo tempo. Uuuggghhhhh!!!! Não agüentei chegar ao banheiro. Meu vômito só tem líquido e cheira a álcool. Só tenho bebido nos últimos três dias e comido cereal. O pior é que não posso sair de casa. Rachel outro dia matou o cachorro do vizinho e o arrastou para casa. Se não fosse minha intervenção, seu almoço teria sido um filé de cão fresco, mal passado. Enterrei o cachorro na horta, enquanto ela ria como uma insana dentro do banheiro.

Suas atitudes estão piorando. Não sei o que fazer. Outro dia ela comia o dedão do pé esquerdo. Sujou todo o chão de sangue. Dei-lhe uma bofetada na cara, mas logo me arrependi. Ela virou para mim, com os olhos roxos e com aquela marca enrugada e ensangüentada no pescoço e balbuciou: “Você me ama. Não tem o direito de fazer isso. Por isso se arrepende, mas o amanhã seu arrependimento será muito maior.” Realmente, me assustei com as palavras e seus olhos assassinos. Aquela não era a Rachel que eu conhecia há mais de dez anos. Com certeza, era o seu corpo ali, mas não era ela, assim como não foi o de Gage...

Sua pele de quando em vez brotava sangue. A madeira do chão estava toda manchada. Os tapetes tive de jogar todos fora, de quebra ainda tive de telefonar para o serviço municipal para vir buscar o lixo em grande escala. E custaram a vir. O serviço em área rural dessa cidade não é dos melhores...

O que fazer com Rachel? Agora ela está na horta, ajoelhada no chão. Acho que está cavando um buraco. Estou muito cansado e tenho tomado muitas pílulas para não dormir. Tenho medo à noite. Ela faz muitos barulhos estranhos e eu nem tenho coragem de me levantar do chão para saber o que é... Mas me mantenho alerto. Consegui dormir hoje umas duas horas quando a tranquei no banheiro. Quando a soltei, ela saiu tão desesperada que desceu tropicando escada abaixo, até cair e rolar até ao último degrau. Me deu um certo alívio naquele momento, pois vi tudo terminado. A paz de Rachel e a minha paz se encontrariam. Ela voltaria ao túmulo e eu tentaria retomar a minha vida. Corri escada abaixo todo esperançoso e ajoelhei defronte seu corpo, encarando seu rosto virado cento e oitenta graus para trás, de acordo como seu corpo havia caído. Cheguei bem perto e lhe ouvi o nariz. Nada de respiração. Senti uma alegria esplêndida. Agora ela não voltaria mais e eu realmente lhe poderia enterrar. Ri muito alto naquela hora. “Finalmente eu me livrei daquilo”. Me assentei ao lado do corpo e descansei minhas pernas cansadas e sujas. Tinha medo de tomar banho. Nem sabia o que poderia encontrar dentro do banheiro depois que eu a tranquei lá. Chorei de verdade. Não precisaria fazer com ela o que fiz com Gage... Meu Deus, aquele dia... Aquele dia... Deixei de pensar nesse dia de súbito e me concentrei no momento. Sim, tudo daria certo a partir daquela hora. Era o final feliz para uma história trágica, a história de um cemitério de animais e de um cemitério micmac, onde se iniciara com a vida e a morte de uma mãe e de um filho com seus míseros três anos.

“Ainda não foi dessa vez, querido... Eu ainda não fiz amor com você!” Levei um susto tão grande e caí desacordado no chão, fazendo o maior estrondo ao bater minha cabeça na madeira. Rachel estatalara os olhos e resmungou tais palavras, se levantando do chão com o pescoço todo virado para trás, fazendo alusão à boneca da minha filha, exatamente do jeito que ela gostava de virar a cabeça da boneca. Seus passos estavam mais lentos e seus gestos também. Pelo menos o tombo lhe havia prejudicado os movimentos. Já era um grande passo. Já era mais difícil suas caminhadas pelas vizinhanças, assustando as pessoas. Mas exatamente ao terminar de pensar nisso, ela sorrateiramente coloca a mão no trinco e tenta sair da casa. Estava trancada à chave. Tateando a parede, com o pescoço virado para trás e gemendo muito, descobriu a chave. Ia girando-a no trinco mas corri até ela, com muitas dores na nuca, e segurei seus braços. Depois que ela voltara, nunca a havia pegado daquela maneira. Firme, convicto e com mais certeza da minha paixão pela antiga Rachel. Tive pena dela naquele momento: não a deixaria sair pela rua como a boneca de Ellie. A segurei pelos dois lados da cabeça e girei novamente cento e oitenta graus. Sua cabeça pertencia ao mundo dos homens normais.

A encarei tristemente. Ela não me olhou dessa vez. Só quis sair depressa de casa e seguir perturbando todos na redondeza. Todos sabiam que ela havia saído do cemitério indígena, por isso ainda não tinham vindo atrás de mim. Só trancavam as portas e ignoravam seus urros. Eu não tinha me acostumado com eles ainda e chorava todas as vezes que aquele barulho vinha de longe. Onde eu fui parar... Não fui capaz de dar descanso para meu filho e para minha esposa... Que tipo de homem eu sou...

Um barulho surdo aconteceu do lado de fora. Era mais um dos feitos de Rachel... O que teria aprontado agora? Fui lentamente até a porta e a vi estirada sobre a grama da horta, com o rosto todo virado pro chão. O que aconteceu? Corri até ela e cutuquei suas pernas com o pé. Nada de reação. Olhei sua cabeça e ela também não girava. Me aproximei e cutuquei com o pé de longe seu braço esquerdo. Inútil. O que era agora? Não queria levar outro susto e por isso fiquei de vigia ao longe, a uns dois metros. Ouvi murmúrios bem baixos... Muito baixos... Franzi as sosobrancelhas e arriscando, me aproximei mais. Ouvi algo parecido: “não consigo, não consigo...” O que aconteceu? Continuei escutando e numa clareza científica, percebi o fato. Rachel murmurou: “Levantar, levantar...” Ela não conseguia levantar. O tombo lha havia quebrado a coluna e a havia deixado tetraplégica... Minha querida Rachel, além de andar entre os dois mundos, agora não poderia mais se mexer... Era minha oportunidade de acabar com essa história. Havia jogado minha pasta com AO 1945 no corredor do meu quarto quando voltei da casa de Crandall e sem pressa alguma e sem medo, poderia ir buscá-lo para por fim ao meu pesadelo. Essa injeção letal consegui por meios ilegais e me custara muito dinheiro. Mas não vi outra saída para acabar com aquilo que voltara no corpo de Gage... Ele falou que não era justo no momento de sua segunda partida, eu também achei que não. Afinal, eu quis aquilo. Eu coloquei aquilo para fora de seu sossego...


Fui devagar pegar a pasta. Voltei correndo com medo de o corpo não estar mais lá, de ela ter me enganado e sumido para sempre. Mas não. Estava do mesmo jeito de antes. Coloquei a mala sobre o corpo e peguei a seringa com uma boa quantia de AO1945. Não testei se a seringa funcionava perfeitamente: injetei levemente a agulha no pescoço de Rachel e apliquei o liquido suavemente... A seringa foi se esvaziando tranquilamente e o músculo antes rígido foi relaxando...brancelhas e arriscando, me aproximei mais. Ouvi algo parecido: “não consigo, não consigo...” O que aconteceu? Continuei escutando e numa clareza científica, percebi o fato. Rachel murmurou: “Levantar, levantar...” Ela não conseguia levantar. O tombo lha havia quebrado a coluna e a havia deixado tetraplégica... Minha querida Rachel, além de andar entre os dois mundos, agora não poderia mais se mexer... Era minha oportunidade de acabar com essa história. Havia jogado minha pasta com AO 1945 no corredor do meu quarto quando voltei da casa de Crandall e sem pressa alguma e sem medo, poderia ir buscá-lo para por fim ao meu pesadelo. Essa injeção letal consegui por meios ilegais e me custara muito dinheiro. Mas não vi outra saída para acabar com aquilo que voltara no c
orpo de Gage... Ele falou que não era justo no momento de sua segunda partida, eu também achei que não. Afinal, eu quis aquilo. Eu coloquei aquilo para fora de seu sossego...

A injeção havia terminado. Os murmúrios haviam cessado e o silêncio tinha tomado conta da casa. Era quase meia noite. O mal cheiro começava a se esvanecer e o aroma do assoalho de madeira maciça começava a entrar pelas minhas narinas. Parte do pesadelo terminou. O fim de tudo está onde Gage se encontra sob as terras, no porão da minha casa... De certa maneira, já tinha deixado tudo preparado, caso não conseguisse me resolver com Rachel...

Meu caso havia sido resolvido. Seu espírito agora descansava em paz. Precisava dar descanso para o meu agora. Meu corpo e minha mente maltrataram minha alma e ela agora clamava por descanso. Um descanso merecido, penso eu. Deixo essas páginas escritas porque o que tem lá em cima desperta curiosidade, depois satisfação, depois desespero, e quando menos se espera, você está num inferno sem volta. Os micmac’s não fizeram solo sagrado, mas buscaram a porta do inferno e depositaram bem perto de onde vim morar com minha família. Com certeza eu repito as palavras do meu grande amigo Crandall: “às vezes a morte é o melhor caminho”. Não se engana a vida, e nem tampouco a morte.

Acabo de escrever essas poucas palavras de desabafo aqui mesmo no porão. Tudo se consuma aqui. Meu filho descansa sob meus pés e também minha esposa. Acabei de enterrá-la. Minha filha terá um futuro brilhante com seus avós e meu presente agora será passado. Essa corda arrumei na casa do Crandall, quando minha esposa e o espírito assassino no corpo de Gage estavam lá. Peguei a corda querendo dar fim a tudo naquela hora mas quando vi Rachel morta, quis dar mais uma chance a ela como dei a Gage. Se ele teve uma chance, porque ela não poderia ter? Talvez com ela seria diferente... Mas não foi e aqui estou eu.

Nem sei se alguém lerá essas minhas palavras. Mas ao ler, não se esqueçam disso: “às vezes, a morte é o melhor caminho”.

Carta encontrada pela polícia de Portland, Maine, EUA, em 17 de Outubro de 1983

(Baseado do romance de terror, Cemitério de animais, de Stephen King)