Discussão Dorense

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quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

O EXORCISMO DE NATAN - capitulo 4


      Naquela manhã em Porto Alegre fazia frio e as pessoas transitavam pelas calçadas portando suas blusas e cachecóis. Janeiro não é uma época clássica de blusas, mas os cachecóis azuis e cinzas desfilavam suas modas nos pescoços das mulheres. Estranho fazer tanto frio nessa época.
       Os carros cortavam o silêncio da rua, deslocando-se para seus destinos, formando buracos na camada de ozônio com os canos de descarga despejando resíduos de poluição. Os indivíduos estavam imersos em seu cotidiano, demonstrando em seus semblantes a mais completa indiferença quanto ao movimento rotineiro de trabalho e de busca de qualidade de vida incessante.
         No grande movimento da Avenida Francisco Trein às cinco da manhã, pessoas com rostos tristes e cansados aguardavam em frente ao hospital, debaixo das árvores com copas verdes e lustrosas, plantadas por todo o quarteirão. Mães com seus bebês, idosos com bengalas descansavam sentados enquanto crianças pequenas corriam por entre os troncos.
         - Ramon, para de correr! Sossega, menino!
Adolescentes conversavam na portaria, pouco se importando com o resultado e o diagnóstico posterior dos exames que tinham em mãos. A uns três metros da entrada principal, um senhor de meia idade fumava seu cigarro importado da China. Um grupo de jovens punk cantarolava Raul Seixas do outro lado da avenida, dedilhando um violão de três cordas misturado à alegria de uma garrafa de conhaque, chamando a atenção de alguns na frente do hospital e também da polícia, que chegavam logo quando o som desafinado do violão quebrava a manhã.
- Circulando! Hospital é lugar de silêncio!
No Cristo Redentor sempre era movimentado devido á circulação de pessoas no Grupo Hospitalar Conceição. Com vários leitos e funcionamento vinte e quatro horas, o atendimento cobria tanto a cidade quanto o interior do estado, por atender pelo SUS. O município ainda investe mais de dezesseis milhões de reais para a ampliação de leitos quanto para a estrutura física do Hospital, dando para os cidadãos gaúchos uma estimativa de vida maior.
O sol nascia por entre os prédios e iluminava o calçamento da avenida. O frenesi piorou e dentro de poucos minutos toda a rua e calçada eram preenchidas por gente e carro.
Na sala de curativos do hospital, Natan estava sentado sobre a cama hospitalar, com os olhos abatidos, braços jogados sobre as pernas manchadas de sangue.
- O médico de sua cidade foi muito eficaz. O curativo foi bem feito, senão ele daria hemorragia até chegar aqui. De onde você é?
- Hulha Negra. – respondeu Márcia às costas do médico, de pé encostada no armário de remédios da sala.
- Tenho um primo que trabalha na mineradora de lá.
- Mineração é o forte da cidade. É o que anda gerando empregos ultimamente.
O médico analisou minuciosamente o machucado e perguntou curioso:
- O que fez esse machucado tão grande? Tem marcas de pontos hospitalares, mas também tem marcas parecidas com faca ou alguma coisa parecida. O que aconteceu com ele?
Márcia encarou Natan que lhe retribuiu com o olhar humilde e de súplica.
- Ele caiu com a cabeça no chão na casa da minha prima e machucou. Daí  eu o levei para o hospital da cidade e deram dez pontos. Mas... Aconteceram coisas...
Desconfiado de que aquela mulher pudesse ter violentado a criança, o médico indagou persuasivo:
-  Como assim, “coisas”?
Ela chegou aos ouvidos do médico e lhe sussurrou para que pudessem conversar em particular.
- Pois não. Agüente firme aí, garotão. Vou pegar uma pomada pra você ali e volto agora.
Com medo de que mais alguém pudesse ouvir a conversa, Márcia perguntou  se era possível conversar numa sala vazia.
Entraram em consultório do plantão e sentaram-se à mesa.
- Natan anda tendo umas atitudes muito estranhas, doutor. Ele tem se comportado estranhamente, falado coisas esquisitas e a voz dele tem uma coisa estranha, como se tivesse muitas vozes falando ao mesmo tempo. Em um momento ele tá bom e em outro ele é mal. Eu nem to reconhecendo meu filho... – Márcia sente as lágrimas correndo pelo seu rosto, quase foi impossibilitada da continuidade da conversa,  queria soluçar - ... parece ter um outro dentro dele. Ele muda e deixa de ser meu Natan. EU VEJO ISSO! Mas de uma hora pra outra ele volta a ser o que era antes! Não sei o que fazer! Se fossem só os machucados, eu não viajaria quatro horas até Porto Alegre! Tem alguma coisa errada com meu menino e não vou sair da cidade até descobrir o que é! – finalizou ela, decidida, dando um tapa na mesa.
- Desculpe doutor, eu não queria...
Doutor Dionísio a escutou atentamente. Como psiquiatra, o caso não passava de mais um, daqueles no qual o paciente sofre de transtorno bipolar. Ele trabalhava no Grupo Hospitalar como clínico geral, mas atuava particular de acordo com sua especialidade.
- Nesse caso, teremos que fazer uma bateria de exames, assim podemos descobrir o porquê de suas atitudes. Exames da cabeça, principalmente. A batida no chão pode ter prejudicado alguma coisa lá dentro. Ele tem se comportado dessa maneira depois da caída?
- Não, doutor. Ele parece ter caído por causa disso mesmo. Ele começou em casa, um dia antes de cair com a cabeça.
- Pois bem, -disse ele – vamos à minha sala fazer as guias dos exames para solucionar esse problema.
Passando na farmácia do hospital, ele pegou a pomada e foi seguido da Márcia até à enfermaria.
- E aí, campeão? Vamos cuidar desse machucado?
Para a surpresa dos dois, Natan havia desaparecido da sala.
- Pra onde ele foi? – perguntou o médico.
Márcia sentiu-se uma estátua na porta da sala. Ela pressentira que algo de muito ruim ia acontecer dentro de instantes. Seu olhar fixava o nada, era uma visionária nesse instante. Enfermeiros e pacientes transitavam pelo corredor como sombras em câmera lenta, com olhos negros e dedos pontiagudos. Uma entidade estranha pairava sobre seu espírito.
- Doutor Dionísio, por favor, dirija-se ao CTI. Doutor Dionísio, por favor, dirija-se ao CTI.
O médico ajeitou o estetoscópio no pescoço.
- Aguarde um pouco aqui na sala e volto para procurar o menino. Ele não deve ter saído do hospital.
Márcia teve um sobressalto ao ouvir o nome do médico duas vezes nas caixas de som dando o recado no corredor. Estava acordando de um transe, preocupada com o que poderia acontecer.
- Tudo bem. Eu procuro por aqui enquanto te espero.
- Não vá embora, mesmo se achá-lo.
- Sim.
Ele foi à direção dos leitos do CTI e Márcia tomou direção oposta, fixando-se na mulher robusta e negra, atendente no balcão da entrada principal.
- Com licença. Por um acaso, você não viu passar por aqui um menino mais ou menos desse tamanho – pôs a mão na altura da cintura – cabelos lisos, camisa vermelha e calça jeans?
A atendente lia uma revista de moda e nem ao menos olhara para Márcia.
- Não.
Inconformada, Márcia alterou a voz, muito nervosa.
- Pelo menos olhe pra mim, irresponsável!
A atendente levantou os olhos, e, encarando o semblante triste de Márcia, sem se alterar, repetiu a resposta, sem a mínima comoção.
- Não.
Márcia se voltou rapidamente e voltou a vasculhar o corredor da sala de curativos.
- Segurança, por favor, precisamos de sua presença urgente na sala das incubadoras. Segurança, por favor, precisamos de sua presença urgente na sala das incubadoras.
Apressada e olhando por todos os consultórios, salas e banheiros, Márcia estancou ao ouvir o aviso.
        - Ele está lá. – pensou ela.
Virou-se e viu as pessoas uniformizadas de verde com escritos em negrito “SEGURANÇA” nas costas dirigindo-se apressadamente ao corredor à esquerda da portaria. Ligeiramente, pôs-se a segui-los hospital adentro.
         Ofegante, parou perto dos seguranças e olhou preocupada para a sala das incubadoras. Tinham chegado rápido depois de cruzarem cinco corredores, e o movimento de enfermeiras e médicos estavam deixando transparecer a gravidade do caso.
         Algumas enfermeiras cochichavam, uns médicos pediam calma, e os seguranças pediam licença para entrar na sala.
         - Somente pessoal autorizado. A sala das incubadoras só médicos e enfermeiras sabem dos cuidados apropriados para ela. Vocês fiquem aqui fora que a gente vai tentar resolver.
  Márcia estava impossibilitada de tomar conhecimento dos problemas da sala das incubadoras. Só ouvia o choro de alguns bebês e muito movimento na sua frente.
Forçando médicos, enfermeiras e funcionários do hospital para os lados, conseguiu ter visão parcial através do vidro.
         - DEUS DO CÉU! – disse ela.
Apesar de muito movimento do lado de fora,a visão parcial lhe permitia assistir poucas enfermeiras na sala, tomando uma cautela extrema ao ver o garoto com um recém-nascido no colo, pedindo carinhosamente que lhes devolvessem o bebê.
         - Dá ele pra mim – pediu uma enfermeira loira e magra, mais perto dele do que as outras duas – e depois a gente toma um sorvete aqui em frente. A mamãe do neném tá querendo ver ele agora.
           Todos estavam assustados. Natan havia aberto todas as incubadoras e pegara o mais doente deles. Conforme a ficha era uma menina e filha de Josélia Ferreira Silva, adolescente, moradora dos subúrbios de Porto Alegre. Tinha nascido pré-maturo de sete meses e precisava de oxigênio. Estava sufocado no colo de Natan e ele não estava disposto a entrega-lo para as enfermeiras.
        - Me dá aqui! – disse a outra mais atrás, impaciente – O bebê vai morrer se ele não voltar pra incubadora.
Natan abraçou a criança com força, e sacudiu a cabeça negativamente.
         A terceira enfermeira foi lentamente por trás dele, tentando pegá-lo de surpresa.
         Dando conta da perspicácia daquela jovem morena de cabelos esticados, Natan correu para o fundo da sala, encostando-se à parede.
       Olhou-as serenamente, avistou sua mãe gritando do lado de fora e sorriu.
       - Deixe-me entrar. Ele é meu filho!
       - Calma, senhora. As enfermeiras vão conseguir tira-lo de lá.
       - Ele está machucado e precisa de mim.
        - O bebê é que não está bom. Quando ele voltar para a incubadora, a  gente vai ter uma conversinha.
         A porta estava trancada. Quanto menos movimento dentro da sala, mais seguro estariam os outros bebês.
        Uma criança má costuma-se denomina-la de problemática e que o melhor diagnóstico é uma terapia ou uma consulta psiquiátrica, sendo solucionado com tratamento medicamentoso. A maldade na infância resume-se em patologia e que o mal pode se tornar bom, basta cuidar.   A caminhada ética na infância não implica em bom e ruim, mas em saudável e doente, uma coisa incompreensível para a moral da esfera adulta, em que ser mal é questão de escolha, não patológica.
      A mãe do bebê apresentou-se debilitada, mas com força na voz e no braço. Tanto Márcia quanto ela gritavam e batiam no vidro, querendo ambas os seus filhos e implorando para que pudessem entrar na sala. Com tamanho estardalhaço, os outros bebês da sala começaram a chorar, deixando nervosos os médicos e as enfermeiras tanto quanto dentro quanto fora da sala. Os parentes dos outros bebês foram se aglomerando ao tumulto, exigindo uma atitude para a situação, pressionando médicos e enfermeiras para entrar na sala e tomar logo o neném daquele garoto louco.
        Mas o silêncio quebrou toda revolta, discussão e brigas no corredor todo. Todos desconfiaram e se fixaram a atenção em Natan no fundo da sala, presumindo que o problema fora resolvido. As enfermeiras pararam em seus lugares, com os braços em posições de conchas, esperando o pior.
        - NATAN, NÂO FAÇA ISSO... – berrou Márcia, espancando o vidro, fazendo ressoar o eco de sua voz nos tímpanos de todos ali presentes.
        Com o susto, as três enfermeiras saltaram sobre o garoto. Esperto, ele conseguira desviar das três momentaneamente, com uma força surpreendente que o bebê pendurado pela perninha delicada nem sequer mexera.
       - Antes de tudo começar, que tudo termine.
        E soltou o bebê de cabeça ao chão verde e límpido da sala, vendo o reflexo de sua mão na poça de sangue disseminado por entre as pernas de metal das incubadoras.  







sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

O EXORCISMO DE NATAN - capitulo 3

           - Foi sim. Foi desse jeito que ele fez.
Daniel bufava de raiva. Sentia um misto de humilhação e ódio de seu primo que pelo menos parecia ser mais fraco e mais inocente do que ele.
- Eu sei pra que isso serve. É pra fazer xixi.
Mônica passava a mão na cabeça do filho, acalentando-o, sentindo o desprezo dele por Natan e procurando nos olhos lacrimosos de Márcia uma explicação plausível para aquilo tudo.
- Mamãe, mamãe – entrou desesperado e chorando Dirceu, tropeçando na porta da cozinha e caindo de joelhos no piso verde frio da cozinha. – Natan matou uma galinha lá fora. Vai lá pra senhora ver! Ele é muito mau com os bichos!
Márcia de um pulo correu para o fundo da horta. As imagens ao seu lado corriam-lhe pela mente como se fosse um pesadelo proveniente de um dia de muito estresse e quando ele estaria na pior fase, ela acordaria. Márcia queria logo acordar. Mas, apesar de querer fugir daquela realidade, era nela que estava e estava sucumbindo aos problemas seqüenciais de seu filho Natan.
- Natan, o que pensa que ta fazendo? Sai desse galinheiro agora mesmo! – gritou ela, ao longe, vendo-o bem sentado, brincando de jogo da velha com a Dirlene na poeira do chão do galinheiro.
Ela ainda não acreditava naquilo tudo. Dirceu não se enganara ou confundira, vendo ele fazer outra coisa e dizendo que ela havia matado uma galinha? Será se ele ameaçara mesmo Daniel? Não seria uma briga de crianças normal e eles acusavam Natan injustamente de coisas inadequadas para uma criança?
Não. Tudo se ajustava no que ela havia ouvido de Daniel e Dirceu. Bem próxima do galinheiro e do lado de fora, viu a camisa dele suja de sangue bem ao peito.
-Sai daí agora! Não me ouviu?
Márcia perdia o controle. Nem sabia mais o que sentia. Olhou ao fundo, percebendo a galinha morta sem a cabeça e a faca suja misturada com poeira e fezes de galinha.
- O que você fez? Perdeu a cabeça? Não to te entendendo! – ela segurava o arame firmemente com as duas mãos, sacudindo-o, querendo chamar a atenção dele, sem coragem de entrar e lhe encarar nos olhos.
Tinha uma coisa de muito errado com ele.
Natan, sempre amigo dos bichos, sempre inimigo dos maus-tratos aos animais agora matara uma galinha. UMA GALINHA. E ainda arrancando-lhe a cabeça com uma faca de cozinha.
Márcia parou de chamar a atenção dele. Ficou quieta e se sentou ali mesmo, no chão empoeirado e sujo. Aquele garoto era o mesmo que a tinha xingado na cama. Aquele jeito frio, perdido, nem sequer dera atenção aos seus gritos. Natan atendia a qualquer fala da mãe. Seu filho havia sumido e ela não sabia onde e como procurar. O corpo dele estava presente, mas sua alma se escondera nos mais sórdidos cantos da Terra.
Mônica correu até ao galinheiro. Entrou e levantou Dirlene pelo braço na força bruta.
- Que pensa que ta fazendo? Não viu o que ele fez? Ele mata uma galinha e você fica aí brincando com ele? – ela estava com os olhos arregalados para Dirlene, assustando a menina.
- Mãe, a gente tava punindo a traidora do rei! Ela tinha que morrer!
- Não sei do que estavam brincando, mas matar uma galinha não é uma coisa boa não. Porque seus irmãos voltaram pra me contar e você ficou aqui? Porque não voltou com eles para me contar?
 - Porque eu queria saber como ia acabar a brincadeira. Só isso.
- Só isso? Ele assusta seu irmão e você nem ta aí? Você ta muito encrencada, menina.
Marcia era incapaz de redargüir os argumentos de sua irmã. Estava sem forças e sem vontade nenhuma de falar, de se proteger e de proteger seu filho. Ela estava derrubada pelo destino triste que começara a lhe mostrar seu caminho.
Natan não deu a mínima para sua tia. Continuou com o jogo da velha sozinho, riscando com o dedo o X, fechando o jogo com Velha.
- Márcia, vai deixar seu filho aqui, jogado no chão? Ele não precisa de pelo menos uma bronca? – voltou-se a irmã para Márcia, arrasada ao chão fora do galinheiro.
- Levanta daí e vem pra cá. O que é que tá acontecendo contigo?
Mônica estava transtornada com a irmã. A atitude de Natan começava a fazer sentido, pelo menos para ela.
- Não é à toa que ele é assim. Garoto mimado, não tá acostumado a ser xingado quando faz coisas erradas. Você não está criando seu filho direito, Márcia.
Com os olhos baixos, ela se sentiu humilhada pela irmã. Sem se dar conta, ela conseguiu levantar-se do chão e foi até lá dentro, puxando a mão do menino com leveza.
- Vamos embora, Natan! Quero conversar contigo em casa.
Dirlene estava ali, em pé ao lado da mãe, encarando o rosto pálido da tia. Não estava triste e muito menos se preocupava com Natan. Afinal, fora ele quem matara a galinha.
- Não, quero que converse com ele aqui e faça ele me pedir desculpa. – Mônica estava fora de si, pois sempre fora rígida com seus filhos e via na sua irmã espécie um espelho seu.
- Mamãe, solta meu braço! Tá doendo, - choramingava Dirlene, tamanha a força que Mônica a apertava. Ela se debatia, mas sua mãe não a escutava.
- Quero que ele peça desculpas pra minha filha e para os meus filhos – exigiu ela. – Eles estão assustados, muito assustados. Não sei o que está acontecendo com vocês dois, mas exijo uma desculpa dele.
 Márcia não entendia a irmã. Há dez minutos ela a consolava como uma mãe e agora a acusava como a pior das inimigas. Sim, o mundo estava girando e se continuasse tudo naquele ritmo desenfreado, ela não acabaria muito bem. Sua vida estava querendo a começar a virar um inferno. “Deus não vai permitir”, alimentava seu sonho. Márcia não estava processando racionalmente todos os problemas: a doença do filho e aparentemente, uma doença nova acalentada pela outra antiga. A superação da outra foi custosa tanto para a mãe quanto para o filho e agora, esse transtorno que ela ainda não entendia.
- Natan, olha pra mim – Márcia disse quase implorando para seu filho – Pede desculpas para sua prima. Escute sua tia! Não vê que ela tá muito brava contigo?
O tom de seu pedido era suplicante. E súplica maior era fazer Natan levantar seu rosto do chão para pelo menos olhá-la nos olhos. “Esse não é o meu sobrinho, Márcia está coberta de razão”, refletiu Mônica. 
Pegando levemente pelo braço do filho, Márcia o levantava do chão com delicadeza.
- O que aconteceu contigo? Você sempre gostou de bichos, porque matou aquela galinha, tão inocente que não te fez nada?
Silêncio nos lábios de Natan. Sua mão apelava para o sentimentalismo com o intuito de o fazer falar e se justificar perante tanta pressão sobre sua mente de criança.
- Deixa pra lá, Márcia, não precisa disso – Mônica retrucou com pena dos dois, afinal seu acesso de raiva não corroborava em nada para uma ajuda de família, no qual todo apoio era fundamental na cura de quaisquer males. – Ele não precisa pedir desculpa, não é Dirlene? O susto passou. As crianças vão entender completamente. Eu me incubo de explicar com cuidado que Natan não está bem.
Desesperada, Márcia sabia que Natan realmente não estava bom, apesar de ter sentido uma pontada no peito pela maneira como sua irmã falara.
- Vamos, me fala, porque você fez isso? Você sempre me conta tudo, porque não me conta agora?
Natan olha fixamente para o fundo do galinheiro, perdido em pensamentos. Parecia estar numa espécie de transe, com os olhos sem piscar e com a boca semi-aberta.
-Natan, me conta agora! – endureceu Márcia, lhe dando uma sacudida forte, fazendo o menino arrastar os pés pelo chão a ponto de quase cair.
Ele a olhou sério, cerrou a boca e tirou seu braço da mão de Márcia bruscamente. “Porque isso tudo? O que eu fiz para ele ficar assim? Não sou uma boa mãe? Será se dei carinho demais e não fui dura nos momentos precisos?” – pensava Márcia, encarando uma criança exteriormente parecida com seu filho.
O silêncio continuava.
- Vamos  para dentro. Lá a gente conversa direito. – direcionou-se Mônica de mãos dadas com sua filha para a portinhola do galinheiro.
Natan se soltou das mãos de Marcia, pegando a faca jogada e a apontou para sua tia, ameaçando-a com um tom sombrio e com voz gutural:
- Fale alguma coisa que eu te pico, prostituta!
Tudo foi tão rápido que Natan nem vira a faca sendo jogada longe por sua mãe e um tapa lhe acertando bem em cheio no rosto.
- Agora foi demais! Vamos embora pra casa, agora! Vamos acertar as contas!
Márcia odiou seu filho pela primeira vez na vida. Odiou tanto que ao leva-lo da casa da irmã, nem se despediu dela e muito menos de Anselmo voltando da cidade.
Entrando no carro, o menino se recusou a ir com ela.
- Entra agora, rapazinho. Não me deixe com mais raiva.
- Não entro. Quero ficar aqui.
- Não me deixe com mais raiva, Natan. Eu também posso mudar se necessário.
            Ele estava do lado de fora próximo à porta de acompanhante do carro. De braços cruzados, sério, deu as costas e ficou estancado. Deu um sorriso malicioso às escondidas enquanto sua mãe saía do carro para lhe ir ao encontro.
            Quando ela o virou pelo braço, Natan perdeu toda a força do corpo, caindo no chão e batendo com a cabeça num banquinho de madeira batida bem em frente à casa. Ela recuou um momento e aguardou qual seria a próxima reação do menino. Nenhum sinal de movimento, nem ao menos de respiração que transparece pelo ir e vir da caixa torácica. Natan se debruçara sobre os dois braços, com a nuca no chão. Márcia batia os pés, impacientemente, esperando alguma atitude estranha do filho. Só não esperava que esse teatro todo acabasse numa poça de sangue acobertando o chão de terra da casa de seu Anselmo.

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            No hospital do município, tiveram de aplicar anestesia para dar dez pontos, fechando o corte na nuca de Natan. Márcia estava em frente do hospital arruinada com a situação. Seu filho estava piorando e com certeza agora precisaria de mais médicos e mais exames para um problema incomum. Mais gastos, que apesar de sua boa situação, teria de apelar para o serviço público, pois muita coisa viria por ali.
            Uma enfermeira conhecida pela cidade toda caminhou até a porta do hospital chamando pela Márcia, uma antiga conhecida sua.
            - O médico está te chamando lá dentro.
            Estando dentro da sala de curativo, o médico lhe pedia um ultrassom da cabeça.
            - Melhor assim. É bom saber se ele não deu nenhuma fratura ao cair.
            - Claro, doutor. Amanhã mesmo estarei fazendo.
            Assim foi feito. Com os exames prontos e com o laudo médico, menos uma preocupação para Márcia. Natan estava bem. Pelo menos era isso o que ela pensava.
            - O que eu tenho mamãe? O que eu fiz? – perguntou inocentemente Natan, sendo colocado para dormir naquela noite de muito calor. – A senhora não me fala o que eu tenho!
             Márcia pôs-se a refletir de como falaria coisas além da imaginação infantil para o filho que nem tinha idéias do que é uma prostituta.
            - Você não se lembra de nada, meu filho? Nada do que fez, do que falou?
             -Não lembro mamãe. Só lembro de ter acordado no hospital e que minha cabeça doía muito.
            - E antes disso? Quando brincava com seus primos, quando entrou na cozinha escondido de mim? Não se lembra de nada?
            - Só me lembro de ter visto o tablet da Dirlene e depois disso, hum... Depois disso... Ai minha cabeça...
            Márcia se apressou para o filho deitado e lhe abraçou.
            - Não precisa fazer força para lembrar, meu filho. Estou contigo agora e é isso o que importa.
            - Posso deitar contigo hoje? É só hoje, juro.
            Márcia olhou seriamente para ele num breve momento e deu um leve sorriso.
            - Só hoje, né?
            - Sim, só hoje.
            - Então vamos.
            Ele se levantou, apertou a mão de sua mãe e caminhou com ela até o quarto de casal.
            - Vá deitando que logo logo estou com você. Só vou escovar os dentes.
            - Vem depressa que quero dormir com você do meu lado.
            - Sim, Nathan. Já estou indo.
            Por que isso não deveria ser uma prova de fé? Afinal, Deus não abandonaria seus filhos à mercê dos infortúnios da vida. Márcia se preparara e estava enfrentando tudo com muito fervor e Jesus caminhava consigo em todos os passos difíceis da vida. Agora ele estava ao seu lado, balbuciando em seus ouvidos que sempre estaria com ela, seja em qualquer momento da vida. Márcia cria nisso, assim como cria nos momentos felizes e tristes da vida eram passageiros. Bem que ultimamente ela não andava tendo alegrias, e por algum momento, acreditava ter Deus a abandonado. Sentia-se repulsiva, digna de pena de si mesma. “Quem sou eu para descobrir os desígnios de Deus? Uma reles mortal...” Assim, levantava a cabeça e seguia em frente. O desânimo batia às suas portas em qualquer dificuldade, sempre lhe tirando as forças. Mas a fé agia nela, como uma bengala ajuda um senhor de idade a caminhar. Os sentimentos eram ambíguos, desvanecendo-se do ódio para o amor; do amor para o ódio. Da tristeza para a alegria, da alegria para a tristeza...
            Há muito tempo não ia à Igreja. Tinha fé, mas não tinha tempo para orações. Nem se lembrava mais como fazer suas preces e nem ao menos lia a Bíblia. A doença bateu em sua casa e os costumes do cotidiano foram se perdendo como poeira ao vento. Sua concentração era voltada totalmente aos cuidados e aos atos sublimes de superação e tristeza contínuos. Não tinha como forçar a si mesmo a fazer algo que não conseguia. Mas pensava muito em Deus. Não ajoelhava e nem abaixava a cabeça, mas conversava com Ele quando estava no hospital ou se perdia no meio de uma oração quando ia dormir. Esse era o máximo conseguido de seu esforço. “Deus saberá entender. Afinal, Ele conhece minha humanidade”.
            Dizia-se estar tudo bem, mas desde que Natan começara com a doença sua alma estava inquieta. Desde sua melhora em tempos de Natal, ela sentia algo muito estranho e isso a incomodava. Às vezes, deixava alimentos no fogão queimando, o leite fervia e derramava. Esse algo intuitivo a massacrava por dentro, aleijando-a, fazendo de sua caminhada ininterrupta para o céu num verdadeiro inferno. Tudo estava tão esquisito, uma inquietação como algo ruim viesse a acontecer todo momento, uma impressão de uma desgraça advinda de qualquer lugar em qualquer momento.
Finalizando o seu tormento, toda sua intuição se confirmava nos últimos dois dias. Isso era o pior de tudo. Não era possível que toda aquela inquietude interna estava se concretizando externamente. “Pensei que era besteira, que fosse um pressentimento só. Mas, chegar nesse ponto?”.
Na frente do espelho do armário do banheiro, Márcia se encarou por um momento. Com olheiras profundas, boca esbranquiçada e cabelos atrapalhados, aproximou seu rosto bem próximo para que pudesse ver claramente suas pálpebras. Lívidas como leite e seus olhos, avermelhados. “Não estou muito bem. Estou acabada... Muito acabada... Que Deus me ajude.”
- Natan, estou indo agora. Já terminei.
Descalça e pijama posto, Márcia caminhou calmamente, desejando ter uma boa noite de sono para tranquilizar sua ansiedade. Tudo aquilo era demais para ela. Era como se todas dificuldades de toda sua vida se acumulassem e desabassem sobre sua casa nos últimos dias.
Na porta do quarto, ela parou. Não tinha de ter sossego ainda aquela noite.
A janela estava aberta e Natan não estava deitado.
- Natan! – chamou ela – Cadê você?
Seu pulso estava acelerado. Olhou para todos os cantos do quarto, inclusive debaixo da cama. Correu para a janela e se sentiu mais aliviada: com o portão trancado, ele não estava no jardim defronte à casa.
- Natan – ela agora berrava – onde você está?
Virou-se assustada com algo caindo no chão. O barulho vinha do banheiro, como algo quebrando e retinindo pelo piso.
- Natan, você está aí?
Com a ausência da resposta, ela foi até ao banheiro com cautela, temendo ser uma outra pessoa, que não o seu filho.
- Natan?
A noite poderia não terminar assim. Márcia queria só uma noite de sono, só isso, mas o destino a traía. A traía covardemente. Precisaria agora ficar mais uma noite inteira acordada, prestando socorro ao seu filho Natan. Porque isso acontecia? Porque logo com ela, tão devota e tão fiel a Deus, o criador de todo o universo. Não entendia como Ele poderia deixar Natan ser vítima de uma doença tão cabal e agora, violenta. Como ela saberia agora se comportar com seu filho arrancando os pontos da cabeça com uma tesoura, ensangüentando todo o piso do banheiro e toda a pia? E agora, noite alta, iniciando uma chuva forte, apagando toda a luz do quarteirão, como comportar diante daquela imagem horrível de sangue salpicado por todo o banheiro?
Na penumbra da luz se apagando, Natan se vira para sua mãe e solta um grito. Márcia se sente toda arrepiada por aquela voz indescritível, parecendo ser várias vozes gritando em coro, que porventura também assustara seu espírito. Esse ficara irrequieto e começara a desconfiar se a alma de seu filho Natan ainda habitava aquele corpo.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

O EXORCISMO DE NATAN - capitulo 2

          Na zona rural mas não muito distante de Hulha Negra, vivia Mônica, irmã de Márcia. Casa ampla, tipo aquelas estilo século XIX, brancas e com janelas de madeira pintadas a um azul escuro. Márcia adorava aquela casa. Voltava num tempo na qual não viveu e todos os infortúnios da cidade desapareciam em meio ao cheiro da grama e do som do ribeirão que passava pelo fundo da extensa horta, plantada com pés de couve bem sadios, laranjas serra-d’água e com três pés de ameixa. Ela e o filho iam pelo menos umas quatro vezes ao ano visitar os parentes.
            - Daniel, o teu primo chegou. Vá brincar com ele na horta! Leva os brinquedos que ganhou no Natal e mostra pra ele!
            Mônica era um pouco mais velha que Márcia. Portava seus quarenta anos muito bem levados, bem cuidados e com muita saúde. As duas pareciam-se bastante, tratadas como gêmeas na pequena cidade tamanha a semelhança entre elas.
            - Mônica, traz pra mim amanhã duas dúzias de ovos. To precisando assar mistura.
            - Não sou eu. É a minha irmã. Liga pra ela.
            - Nossa, me desculpe. Vocês se parecem tanto... Eu acabei me confundindo...
            - Não tem problema não. O pessoal confunde mesmo.
            Quando a Mônica ia na cidade, passava pelos mesmos transtornos. Às vezes, ela com pressa, parava para atender aos colegas da Márcia pedindo por orações.
            - Não é pra minha irmã que você quer pedir não?
            - Mas é que te vejo na igreja nas quartas...
            - Qual igreja? – responde Mônica ressabiada.
            - Na Assembléia, nas quartas.
            - Ah, não! Eu não vou na Assembléia de Deus não. Quem vai é minha irmã. Todos nos confundem. Somos muito parecidas! Eu sou católica.
            - Ahn...
            A religião era uma das diferenças entre as duas. Diferenças que só sabia quem era convivente com ambas. Mônica era paciente, mas também mais estourada nos momentos de extrema provocação. Márcia mais gananciosa, invejosa, mas pelo outro lado compreendia mais o sentimento alheio. Enfim, qualidades e defeitos presentes em todos os seres humanos. Com elas não poderia ser diferente.
            A casa de Mônica era realmente antiga. Comprada pelo marido Anselmo, datava do final do século XIX. Optou somente por reformas internas apesar do Instituto do Patrimônio e Artístico do Rio Grande do Sul não tombar o imóvel. Tanto ele como Márcia era um admirador profundo de objetos e imóveis históricos.
            A casa original apresentava chão de madeira antiga desconhecida, as paredes feitas de barro. Anselmo não desejava um desabamento inesperado na cabeça de sua família. A estrutura interna foi toda modernizada, incluindo fortes colunas de cimento para reforçar as paredes externas, pois essas eram as únicas que ele queria preservar, incluindo uma pintura reforçada como a original. As paredes da parte de dentro foram desabadas, o chão todo retirado e o telhado removido. Derrubaram cimento nos enormes buracos do piso da casa, bateram laje, e, para causar inveja naqueles admiradores de patrimônios históricos, o telhado original foi posto de volta.
            - Isso vai virar ninho de pomba. – reclamou Mônica.
            - Ainda bem que é de pomba, não é de cobra. – riu-se Anselmo da brincadeira de duplo sentido.
            Viveriam numa casa de um século passado em um século posterior. Esse era o desejo de adolescente de Anselmo. Para Mônica as paredes externas não faziam tanta diferença. Alertou Anselmo da reforma interna, tanto para a segurança da família quanto do papel estético. Achava horrorosos os objetos e forma da casa antiga. Não queria viver num museu no meio do mato. Gostava de viver na zona rural, mas isso bastava para seu ego. Que os museus fossem dádiva de cidades grandes.
            Anselmo ainda não havia chegado em casa. Fora na cidade fazer compras, ir no açougue e levara leite das cinco vacas que possuía no terreno ao lado da casa para vender.
            - Mônica, tem muito tempo que vocês compraram esse terreno?
            - Tem quatro meses. Anselmo também comprou as vacas e essas galinhas que estão no fundo da horta. Nunca vi gostar de bicho que nem ele. Agora a Dirlene quer um cachorro e ele falou que vai dar ela no ano que vem.
            O pasto, à esquerda da casa, era separado com placas duplas de cimento horizontalmente encaixadas por colunas do mesmo material. Não era tão alto, mas impedia a curiosidade das crianças e suas peraltices. Esse muro cercava a casa até ao fundo da horta, revelando um serviço bem feito e muito caprichoso do Anselmo.
            A casa era grande, assim como o terreno. Tanto que a horta além das plantações de couve e de ameixa dava espaço para um galinheiro com cerca de trinta galinhas e cinco galos e mais um espaço cimentado entre a porta que dava para ela de quatro metros. Anselmo cimentara aquela parte com o intuito de criar uma área de lazer para as crianças na época do calor. Tinha uma piscina de plástico desmontada ao lado, mas com certeza em pouco tempo as crianças todas estariam nadando para o entretenimento de todos naquela casa.
            As duas irmãs sempre se deram bem e preocupavam-se uma com a outra. Além das visitas de Márcia de costume, ao saber de qualquer dificuldade que ambas tinham, elas se ajudavam, sejam em quaisquer circunstâncias.
            - Como o Natan está passando agora?
            - Ele melhorou bastante – Márcia hesitou por um momento – Mas parece que ontem ele deu uma recaída.
            - Por quê? Ele passou mal?
            - Não. Ele ficou muito esquisito.
            - Como assim? Esquisito como?
            - Ele me falou de um jeito que nunca tinha falado antes. Isso sem falar do jeito esquisito quando acordou. Foi uma coisa assim de momento, mas eu não o reconheci. Foi muito estranho.
            As duas caminharam até a horta e entraram para a cozinha. Sentaram-se à mesa de jantar, ao lado da outra. Mônica apertou a mão de sua irmã.
            - Confia em Deus, minha querida. Ele sabe o que faz. Natan deve ter dado algo só de momento. O pior já passou. Talvez o que ele tá dando agora é somente um reflexo da fase ruim da doença dele. Ele deve estar assustado, assim como você. O que ele fez pra te deixar dessa maneira?
            O aperto das mãos ficou ainda mais firme.
Márcia trouxe para junto de seu busto as mãos de Mônica e chorou. “Ela realmente está assustada”, pensou a irmã.
- Calma querida. Porque tá desse jeito? Foi só uma brincadeira dele.
- Mesmo quando ele tá brincando, por pior que seja o disfarce, eu o conheço muito bem. Ele sempre foi meu Natan. Mas por alguns segundos ele deixou de ser ele. Tenho certeza disso.
Mônica queria ficar desconsolada, mas não podia. Teria que tirar forças do fundo de sua alma para apoiar sua irmã caçula. A tristeza também a estava abatendo, mas até ali ela estava conseguindo resistir duramente. Mas só até ali.
Dirlene era a filha do meio de Mônica. Tinha nove anos. Tinha mais dois irmãos: Daniel, o mais velho, de dez anos e Dirceu, de oito. Os filhos com diferença de um ano somente era programado pelo casal. Queriam ter três filhos e preferiram tê-los em seguida para depois parar. Uma família grande e estruturada, mas, por precaução, Mônica operara e fizera ligadura nas trompas para evitar acidentes posteriores.
Todos os primos brincavam na calçada improvisada feita por Anselmo na porta da cozinha para a horta. Brincavam e gritavam, corriam, deitavam no cimento e rolavam. Um copiava o outro nas brincadeiras.
Natan entrou na cozinha enquanto os primos estavam distraídos olhando o tablet novo de Dirlene. Pararam com as brincadeiras para admirar e mexer nos presentes ganhos no Natal de 2012. Márcia e Mônica estavam tensas e nervosas e nem se deram pela presença do menino entrando sorrateiramente pela porta.
Abriu uma gaveta de um pequeno armarinho de madeira maciça próxima à entrada e escolheu a maior faca dentre cinco que estavam misturadas entre si. Tinha o cabo de plástico preto e media em torno de vinte centímetros. Olhou para sua mãe e percebeu sua distração contínua. Mônica a aconselhava e alisava seus cabelos, num ato de perseverança e num aprofundamento de diálogo, continuando a não perceber a presença de Natan na cozinha.
Assim como ele entrou, saiu sem deixar vestígios. Escondeu a faca nas costas, firmando-a com as duas mãos para se ter certeza de que ela não cairia. Queria sua mãe e sua tia na horta depois da derradeira brincadeira planejada, não desejando a interferência dos adultos no ato sublime.
- Vocês querem brincar de uma brincadeira nova?
Os filhos de Mônica se entreolharam e concordaram com a cabeça, descartando suas atenções ao tablet novo de Dirlene.
            Natan estava muito excitado. Queria pregar uma peça nos primos e se deleitar em suas reações com a brincadeira que tinha em mente. Mostrou a faca com a ponta para cima com somente uma das mãos, fazendo reflexo forte do sol nos olhos pequeninos de Dirceu.
            - Onde você pegou essa faca, Natan? – perguntou assustado Daniel.
            - Na cozinha.
            - Se minha mãe te pegar, ela te mata. Isso não é coisa pra brincar e, aliás, se quisesse brincar de fazer reflexo na nossa cara, pegaria uma tampa de lata. Dá muito mais reflexo porque ela é bem maior que essa faca e menos perigosa. Devolve isso agora.
            - A brincadeira não é essa, retardado. Venham comigo.
            A voz de Natan soava com autoridade. Os seus primos mais novos estremeceram com o tom ameaçador dele, mas Daniel, sendo mais velho e mais malicioso, não deixou passar por menos.
            - Retardado é você. Me dá isso agora.
            No trajeto até ao fundo da horta, em caminho para o galinheiro, Natan vira a cabeça para trás e o assusta com um olhar sombrio e lento. Todos pararam de caminhar e perceberam o clima tenso entre os dois. Em cinco passos, estando Natan no princípio da fila e Daniel por último, ele se defronta cara a cara com seu primo e lhe agarra o pescoço com a mão direita, dificultando a passagem de ar pela garganta.
            Estrebuchando e com a língua para fora, Natan aponta a faca enorme para a área genital de Daniel e lhe sussurra nos ouvidos:
            - Se quiser teimar comigo e me desafiar, tudo bem. Mas ficará sem isso – cutucou a ponta da faca no pequeno volume frontal da bermuda verde do primo – sem saber pra que serve.
            Com uma força de adulto, Natan derruba Daniel no chão. Ele esfrega a garganta, meio que tossindo e gemendo de dor, com os olhos esbugalhados encarando “aquilo que parecia ser seu primo”.
            Com o olhar mortal e sádico lhe encarando, Daniel percebia algo de muito errado com aquele menino sempre meigo, gentil, alegre e educado. Estava muito assustado e não sabia o que pensar. “O que aconteceu comigo?” “Porque ele ta fazendo isso?” “O que ele quer fazer, do que ele quer brincar?” “Ele vai matar a gente?”
            De um pulo, saiu do chão e correu para a cozinha. Nem chorou, mas estava ofegante e nervoso. As marcas dos dedos de Natan envergavam seu pescoço num roxo escuro, sinal de força de um adulto de uns vinte e cinco anos.
            Os outros dois acompanharam Natan até o galinheiro, com medo de lhes acontecer o mesmo de Daniel. Estavam apreensivos, nervosos e Dirceu começou a chorar em silêncio.
            - Não precisa chorar. Agora vou mostrar uma brincadeira nova e daqui a pouco você vai rir novamente. Seu irmão porque é um chato e não sabe brincar.
            Dirlene esboçava um comportamento diverso dos irmãos. Não importava com o gênio de Daniel, mas também não tinha medo do primo. Queria chegar até ao final porque sabia instintivamente que alguma coisa muito diferente do seu cotidiano viria por ali.
            O galinheiro era grande e sua porta, tanto como o resto dele, era feito de tela de arame, com minúsculos espaços abertos. Era alto devido à prevenção de ataques de animais comuns naquela área da cidade, como gambás. Natan entrou dando um solavanco forte na porta, fazendo todo o galinheiro estremecer. Dirlene deu uma gargalhada, tampando a boca com as mãos logo em seguida, tomada pela vergonha.
            - Rir não é vergonha. Porque tampou a boca? – retrucou Natan, jogando a faca no chão, olhando para os cantos, tomando posição e correndo atrás das galinhas, querendo pegar qualquer uma para por seu plano em ação.
            Ela não respondeu. Ficou parada em pé olhando o primo correr. Dirceu estava sentado junto à porta, olhando fixo para a faca brilhando no chão. Não conseguia chorar mais. Nem esboçava mais nenhum comportamento diante do primo.
            - Pronto. Peguei uma. E por sorte, ela é preta.
            Natan conseguira encurralar uma galinha no canto esquerdo do fundo do galinheiro. Ela cacarejou um pouco nos braços dele, se calando bruscamente sem motivo aparente.
            - Venham aqui vocês dois. Vamos sentar aqui.
            Natan pegou a faca jogada e sentou-se juntamente com os primos na sombra onde as galinhas dormiam. Olhou bem para ela, recebendo a atenção em troca. Silêncio total por ali. Todas as galinhas ficaram em silêncio, encarando o garoto.
            Dirlene e Dirceu olharam em volta, estupefatos. Ela, ansiosa. Ele, com medo e querendo a mãe.
              - Reparem bem como a galinha nem mexe a cabeça. Eu vou mexer o corpo dela pra cima e pra baixo e a cabeça dela vai ficar no mesmo lugar.
            Os irmãos não entenderam a brincadeira do primo. Se ele queria mostrar aquilo, porque a faca? Dirlene ficara desapontada, pois aguardava uma coisa bem pior.
            A galinha estava sossegada nas mãos de Natan. Seu papo cacarejava enquanto ele a balançava de cima para baixo, ficando com a cabeça sempre no mesmo lugar. Dirlene estava encantada com a mágica de Natan.
            - Como você faz isso? – pergunta ela – Quero fazer também.
            - Vem cá. Segura ela assim, desse jeito – pôs as mãos dela segurando as asas junto ao corpo - e balança ela de cima pra baixo, devagarinho. Depois a gente deixa o Dirceu segurar.
            O primo de Natan balançou a cabeça negativamente. Não queria saber daquela brincadeira. Só queria ir pra casa, mas não tinha coragem suficiente de desafiar Natan.
            - Também sou mágica, Dirceu. Olha só o que eu to fazendo. Vem cá você também.
            Ele olhou triste para a irmã e choramingou:
            -Quero ir embora.
            - Vem cá segurar a galinha também.
            - Não. Quero ir embora. – disse ele firme.
            Natan o encarou friamente.
            Dirceu baixou a cabeça, prestando atenção num talo de couve jogado para as galinhas no meio de suas pernas. Não queria olhar para o primo mais.
            - Agora chegou a parte mais interessante da brincadeira. Vejam só o que acontece com ela.
            Dirlene ajeitou seus cabelos loiros compridos por trás da nuca, voltando a se sentar do lado do irmão. Esse não levantava mais a cabeça, e tremia o corpo todo. Voltou a chorar.
            - Chorão! Para com isso! – empurrou Dirlene, derrubando-o no chão empoeirado e sujo com fezes de galinha. Dirceu se levantou correndo, batendo a roupa, com mais força na bunda, lugar onde mais estava prejudicado pelo chão do galinheiro. Olhou para o Natan e ficou imóvel, com os olhos parados para o que ele fazia.
            Isso chamou a atenção da prima. Ela olhou para trás e viu o primo preparando a próxima brincadeira: firmando a galinha no chão com a mão esquerda, com o pescoço bem esticado, e na mão direita a faca bem firme em posição de guilhotina, mirava o pescoço do animal.
- Agora vamos brincar de Rei Arthur. A galinha é a traidora do reino e merece ser punida. Ela tem que ser morta! E você, bruxa – apontou a faca para Dirlene - se encarregará de levar sua alma para o inferno. Eu lhe farei rainha depois da execução!
Ela estufou o peito e cruzou os braços por sobre a barriga, fechando os olhos. Estava pronta e já invocara Belzebu para a condenação da alma daquela pobre galinha.
Dirceu começou a berrar escandalosamente. Dirlene foi até ele, segurando-o e lhe tampando a boca, ordenou a Natan:
 - Faça a justiça. Condene o traidor! O mago está nas minhas garras e não poderá fazer nada.
Natan apertou os beiços como quem precisava de muita força e desceu a faca com precisão no pescoço da galinha.
Foi um estardalhaço em todo o galinheiro. Aquele silêncio de outrora se esvanecera. As galinhas batiam as asas com força, carcarejavam alto enquanto Natan levantava triunfante a galinha se debatendo sem a cabeça, com o braço e o peito todo sujo de sangue.
Dirceu se debatia pra se livrar dos braços da irmã. Insistiu tanto que a acertou no estômago, fazendo-a arquejar, a ponto de se ajoelhar no chão sujo. Ele saiu correndo galinheiro afora, gritando: “Mamãe, mamãe”.
- Venha para mim, minha rainha. Venha se sentar ao meu lado.
Dirlene, apavorada com o escândalo do irmão, se voltou para Natan, vendo que ele já largara a galinha morta no chão.
Indubitavelmente mais calma, ela era a rainha agora. Rainha do galinheiro junto ao rei Natan. Os dois se sentaram no centro e ele se apoiou na faca, fazendo dela seu cetro de ouro.