Naquela manhã em Porto Alegre fazia frio e as pessoas
transitavam pelas calçadas portando suas blusas e cachecóis. Janeiro não é uma
época clássica de blusas, mas os cachecóis azuis e cinzas desfilavam suas modas
nos pescoços das mulheres. Estranho fazer tanto frio nessa época.
Os carros cortavam o silêncio da rua,
deslocando-se para seus destinos, formando buracos na camada de ozônio com os
canos de descarga despejando resíduos de poluição. Os indivíduos estavam
imersos em seu cotidiano, demonstrando em seus semblantes a mais completa
indiferença quanto ao movimento rotineiro de trabalho e de busca de qualidade
de vida incessante.
No grande movimento da Avenida
Francisco Trein às cinco da manhã, pessoas com rostos tristes e cansados
aguardavam em frente ao hospital, debaixo das árvores com copas verdes e
lustrosas, plantadas por todo o quarteirão. Mães com seus bebês, idosos com
bengalas descansavam sentados enquanto crianças pequenas corriam por entre os
troncos.
- Ramon, para
de correr! Sossega, menino!
Adolescentes
conversavam na portaria, pouco se importando com o resultado e o diagnóstico
posterior dos exames que tinham em mãos. A uns três metros da entrada
principal, um senhor de meia idade fumava seu cigarro importado da China. Um grupo
de jovens punk cantarolava Raul Seixas do outro lado da avenida, dedilhando um
violão de três cordas misturado à alegria de uma garrafa de conhaque, chamando
a atenção de alguns na frente do hospital e também da polícia, que chegavam
logo quando o som desafinado do violão quebrava a manhã.
-
Circulando! Hospital é lugar de silêncio!
No
Cristo Redentor sempre era movimentado devido á circulação de pessoas no Grupo
Hospitalar Conceição. Com vários leitos e funcionamento vinte e quatro horas, o
atendimento cobria tanto a cidade quanto o interior do estado, por atender pelo
SUS. O município ainda investe mais de dezesseis milhões de reais para a
ampliação de leitos quanto para a estrutura física do Hospital, dando para os
cidadãos gaúchos uma estimativa de vida maior.
O
sol nascia por entre os prédios e iluminava o calçamento da avenida. O frenesi
piorou e dentro de poucos minutos toda a rua e calçada eram preenchidas por
gente e carro.
Na
sala de curativos do hospital, Natan estava sentado sobre a cama hospitalar,
com os olhos abatidos, braços jogados sobre as pernas manchadas de sangue.
-
O médico de sua cidade foi muito eficaz. O curativo foi bem feito, senão ele
daria hemorragia até chegar aqui. De onde você é?
-
Hulha Negra. – respondeu Márcia às costas do médico, de pé encostada no armário
de remédios da sala.
-
Tenho um primo que trabalha na mineradora de lá.
-
Mineração é o forte da cidade. É o que anda gerando empregos ultimamente.
O
médico analisou minuciosamente o machucado e perguntou curioso:
-
O que fez esse machucado tão grande? Tem marcas de pontos hospitalares, mas
também tem marcas parecidas com faca ou alguma coisa parecida. O que aconteceu
com ele?
Márcia
encarou Natan que lhe retribuiu com o olhar humilde e de súplica.
-
Ele caiu com a cabeça no chão na casa da minha prima e machucou. Daí eu o levei para o hospital da cidade e deram
dez pontos. Mas... Aconteceram coisas...
Desconfiado
de que aquela mulher pudesse ter violentado a criança, o médico indagou
persuasivo:
- Como assim, “coisas”?
Ela
chegou aos ouvidos do médico e lhe sussurrou para que pudessem conversar em
particular.
-
Pois não. Agüente firme aí, garotão. Vou pegar uma pomada pra você ali e volto
agora.
Com
medo de que mais alguém pudesse ouvir a conversa, Márcia perguntou se era possível conversar numa sala vazia.
Entraram
em consultório do plantão e sentaram-se à mesa.
-
Natan anda tendo umas atitudes muito estranhas, doutor. Ele tem se comportado
estranhamente, falado coisas esquisitas e a voz dele tem uma coisa estranha, como
se tivesse muitas vozes falando ao mesmo tempo. Em um momento ele tá bom e em
outro ele é mal. Eu nem to reconhecendo meu filho... – Márcia sente as lágrimas
correndo pelo seu rosto, quase foi impossibilitada da continuidade da conversa, queria soluçar - ... parece ter um outro
dentro dele. Ele muda e deixa de ser meu Natan. EU VEJO ISSO! Mas de uma hora
pra outra ele volta a ser o que era antes! Não sei o que fazer! Se fossem só os
machucados, eu não viajaria quatro horas até Porto Alegre! Tem alguma coisa
errada com meu menino e não vou sair da cidade até descobrir o que é! –
finalizou ela, decidida, dando um tapa na mesa.
-
Desculpe doutor, eu não queria...
Doutor
Dionísio a escutou atentamente. Como psiquiatra, o caso não passava de mais um,
daqueles no qual o paciente sofre de transtorno bipolar. Ele trabalhava no
Grupo Hospitalar como clínico geral, mas atuava particular de acordo com sua
especialidade.
-
Nesse caso, teremos que fazer uma bateria de exames, assim podemos descobrir o porquê
de suas atitudes. Exames da cabeça, principalmente. A batida no chão pode ter
prejudicado alguma coisa lá dentro. Ele tem se comportado dessa maneira depois
da caída?
-
Não, doutor. Ele parece ter caído por causa disso mesmo. Ele começou em casa,
um dia antes de cair com a cabeça.
-
Pois bem, -disse ele – vamos à minha sala fazer as guias dos exames para
solucionar esse problema.
Passando
na farmácia do hospital, ele pegou a pomada e foi seguido da Márcia até à
enfermaria.
-
E aí, campeão? Vamos cuidar desse machucado?
Para
a surpresa dos dois, Natan havia desaparecido da sala.
-
Pra onde ele foi? – perguntou o médico.
Márcia
sentiu-se uma estátua na porta da sala. Ela pressentira que algo de muito ruim
ia acontecer dentro de instantes. Seu olhar fixava o nada, era uma visionária
nesse instante. Enfermeiros e pacientes transitavam pelo corredor como sombras
em câmera lenta, com olhos negros e dedos pontiagudos. Uma entidade estranha
pairava sobre seu espírito.
-
Doutor Dionísio, por favor, dirija-se ao CTI. Doutor Dionísio, por favor,
dirija-se ao CTI.
O
médico ajeitou o estetoscópio no pescoço.
-
Aguarde um pouco aqui na sala e volto para procurar o menino. Ele não deve ter
saído do hospital.
Márcia
teve um sobressalto ao ouvir o nome do médico duas vezes nas caixas de som
dando o recado no corredor. Estava acordando de um transe, preocupada com o que
poderia acontecer.
-
Tudo bem. Eu procuro por aqui enquanto te espero.
-
Não vá embora, mesmo se achá-lo.
-
Sim.
Ele
foi à direção dos leitos do CTI e Márcia tomou direção oposta, fixando-se na
mulher robusta e negra, atendente no balcão da entrada principal.
-
Com licença. Por um acaso, você não viu passar por aqui um menino mais ou menos
desse tamanho – pôs a mão na altura da cintura – cabelos lisos, camisa vermelha
e calça jeans?
A
atendente lia uma revista de moda e nem ao menos olhara para Márcia.
-
Não.
Inconformada,
Márcia alterou a voz, muito nervosa.
-
Pelo menos olhe pra mim, irresponsável!
A
atendente levantou os olhos, e, encarando o semblante triste de Márcia, sem se
alterar, repetiu a resposta, sem a mínima comoção.
-
Não.
Márcia
se voltou rapidamente e voltou a vasculhar o corredor da sala de curativos.
-
Segurança, por favor, precisamos de sua presença urgente na sala das
incubadoras. Segurança, por favor, precisamos de sua presença urgente na sala
das incubadoras.
Apressada e olhando por todos os consultórios, salas e
banheiros, Márcia estancou ao ouvir o aviso.
- Ele está lá. –
pensou ela.
Virou-se e viu as pessoas uniformizadas de
verde com escritos em negrito “SEGURANÇA” nas costas dirigindo-se
apressadamente ao corredor à esquerda da portaria. Ligeiramente, pôs-se a
segui-los hospital adentro.
Ofegante,
parou perto dos seguranças e olhou preocupada para a sala das incubadoras.
Tinham chegado rápido depois de cruzarem cinco corredores, e o movimento de
enfermeiras e médicos estavam deixando transparecer a gravidade do caso.
Algumas
enfermeiras cochichavam, uns médicos pediam calma, e os seguranças pediam
licença para entrar na sala.
- Somente pessoal autorizado. A sala das
incubadoras só médicos e enfermeiras sabem dos cuidados apropriados para ela. Vocês fiquem aqui fora que a gente vai
tentar resolver.
Márcia estava
impossibilitada de tomar conhecimento dos problemas da sala das incubadoras. Só
ouvia o choro de alguns bebês e muito movimento na sua frente.
Forçando médicos, enfermeiras e funcionários do hospital
para os lados, conseguiu ter visão parcial através do vidro.
- DEUS DO CÉU! – disse ela.
Apesar de muito movimento do lado de fora,a visão parcial
lhe permitia assistir poucas enfermeiras na sala, tomando uma cautela extrema
ao ver o garoto com um recém-nascido no colo, pedindo carinhosamente que lhes
devolvessem o bebê.
- Dá ele pra mim – pediu uma enfermeira loira e magra, mais
perto dele do que as outras duas – e depois a gente toma um sorvete aqui em
frente. A mamãe do neném tá querendo ver ele agora.
Todos estavam assustados. Natan havia aberto todas as
incubadoras e pegara o mais doente deles. Conforme a ficha era uma menina e
filha de Josélia Ferreira Silva, adolescente, moradora dos subúrbios de Porto
Alegre. Tinha nascido pré-maturo de sete meses e precisava de oxigênio. Estava
sufocado no colo de Natan e ele não estava disposto a entrega-lo para as
enfermeiras.
- Me dá aqui! – disse a outra mais atrás, impaciente – O
bebê vai morrer se ele não voltar pra incubadora.
Natan abraçou a criança com força, e sacudiu a cabeça
negativamente.
A terceira enfermeira foi lentamente por trás dele, tentando
pegá-lo de surpresa.
Dando conta da perspicácia daquela jovem morena de cabelos
esticados, Natan correu para o fundo da sala, encostando-se à parede.
Olhou-as serenamente, avistou sua mãe gritando do lado de
fora e sorriu.
- Deixe-me entrar. Ele é meu filho!
- Calma, senhora. As enfermeiras vão conseguir tira-lo de
lá.
- Ele está machucado e precisa de mim.
- O bebê é que não está bom. Quando ele voltar para a
incubadora, a gente vai ter uma conversinha.
A porta estava trancada. Quanto menos movimento dentro da
sala, mais seguro estariam os outros bebês.
Uma criança má costuma-se denomina-la de problemática e que
o melhor diagnóstico é uma terapia ou uma consulta psiquiátrica, sendo
solucionado com tratamento medicamentoso. A maldade na infância resume-se em
patologia e que o mal pode se tornar bom, basta cuidar. A caminhada ética na
infância não implica em bom e ruim, mas em saudável e doente, uma coisa
incompreensível para a moral da esfera adulta, em que ser mal é questão de
escolha, não patológica.
A mãe do bebê apresentou-se debilitada, mas com força na voz
e no braço. Tanto Márcia quanto ela gritavam e batiam no vidro, querendo ambas
os seus filhos e implorando para que pudessem entrar na sala. Com tamanho
estardalhaço, os outros bebês da sala começaram a chorar, deixando nervosos os
médicos e as enfermeiras tanto quanto dentro quanto fora da sala. Os parentes
dos outros bebês foram se aglomerando ao tumulto, exigindo uma atitude para a
situação, pressionando médicos e enfermeiras para entrar na sala e tomar logo o
neném daquele garoto louco.
Mas o silêncio quebrou toda revolta, discussão e brigas no
corredor todo. Todos desconfiaram e se fixaram a atenção em Natan no fundo da
sala, presumindo que o problema fora resolvido. As enfermeiras pararam em seus
lugares, com os braços em posições de conchas, esperando o pior.
- NATAN, NÂO FAÇA ISSO... – berrou Márcia, espancando o
vidro, fazendo ressoar o eco de sua voz nos tímpanos de todos ali presentes.
Com o susto, as três enfermeiras saltaram sobre o garoto.
Esperto, ele conseguira desviar das três momentaneamente, com uma força
surpreendente que o bebê pendurado pela perninha delicada nem sequer mexera.
- Antes de tudo começar, que tudo termine.
E soltou o bebê de cabeça ao chão verde e límpido da sala,
vendo o reflexo de sua mão na poça de sangue disseminado por entre as pernas de
metal das incubadoras.