Discussão Dorense

Discussão Dorense

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

BOI DA PROMESSA - PARTE II



Na prisão de escravos, no porão da fazenda onde a porta era externa, sinhazinha de manhã bem cedo foi visitar pai Francisco.

- Foi muito ruim o que fez com meu boi. Você não tem coração não?

Gemendo pela dor irremediável nas costas, ele não teve dúvidas ao responder.

- Sinhá, não fiz por mal. Levei pra minha senhora comer. Ela teve desejo de comer língua de boi e tava na hora do neném nascer. Não queria que ele nascesse com cara de boi!


- Mas logo o mais bonito? Não tinha outros por lá?

- Ele me chamou a atenção porque era o mais bonito. Eu vi ele de longe e fui correndo pegar sua língua. Minha senhora estava sentindo dores naquela hora e não pude ficar escolhendo muito.

Chorando, sinhazinha suplica ao escravo:

- E como EU fico? Tô chorando por ele há quanto tempo... Sinto muito a falta dele, ele era tudo pra mim. Outro boi nunca será a mesma coisa e também nem quero outro. Eu exijo o meu boi de volta!

Pai Francisco se aproximou bem da porta da cela e a encarou bem nos olhos.

- Para nós escravos, isso tem como acontecer.

O rosto de sinhazinha se iluminou.

- Como?

- Nossa gente diz que se é capaz de reviver uma coisa que morreu. Ouvi casos de que pajés das tribos dessa região trouxeram a vida novamente a animais mortos por caçadores maus. São muitas histórias que escuto desde que sou criança.

Sinhazinha, um pouco incrédula mas esperançosa, insistiu um pouco no caso.

- Me conta onde encontro um desses pajés que te tiro dessa prisão.

Sem interesse em ser libertado e convencido da paixão da sinhazinha pelo boi, pai Francisco revela o paradeiro do pajé.

- O que fica mais perto é o pajé da tribo Parintintins, a três dias daqui.

Sinhozinho demorara dois dias para chegar a tal tribo indo a cavalo. Acompanhado de seus capitães armados às escondidas e de sua filha, não hesitara em atender ao pedido de sinhazinha. Ele também gostava muito daquele boi e faria tudo para tê-lo de volta, nem que para isso custasse acreditar nessas besteiras de rituais xamânicos.

O pajé, assustado com a visita, pede calmamente para que sinhozinho se explique.

- Meu escravo matou o boi mais bonito e querido da fazenda e nós queríamos tê-lo de volta. Acredito que você possa fazer isso, trazer sua alma de volta ao seu corpo. Minha filha não se agüenta de angústia e eu também estou em suplício.

Pajé não olha o fazendeiro mas encara sinhazinha. Chega bem perto dela e comprime seu rosto em suas mãos ásperas. Aproximou seu rosto bem perto do dela, observou os olhos inquietos da moça e não duvidou. Ela realmente gostava do boi.

Deu ordem a alguns escolhidos dos índios da tribo para que o acompanhassem e o ajudassem no ritual necessário para trazer o boi de volta à vida.

- Só te digo uma coisa, senhoria: o espírito poderá querer uma forma diferente em vida, já que ele se foi e nós o traremos de volta. A senhora ainda assim quer o boi?

- Quero ele de volta nem que volte em forma de cobra gigante.

Caminharam de volta à fazenda, levando o caminho de volta três dias.

O boi estava tampado por vários sacos de milho no centro do curral.

Era tardinha e o pajé não queria perder tempo. Mandou que seus acompanhantes o retirassem do curral e o botassem um pouco à frente da porteira.
Levantou uma enorme fogueira e os índios fizeram uma roda em volta dela. Começaram suas danças e cânticos, batendo palmas e o pé forte no chão. O pajé, com as costas virada para o curral, sentou-se no chão e cruzou as pernas. Respirou profundamente e fechou os olhos. A dança dos índios se intensificou, as palmas cessaram e as batidas dos pés ficaram mais fortes, acelerando o ritmo da dança. A fogueira se expandia aos lados e para cima. O contato estava
querendo se estabelecer: o xamã buscava a alma do boi.

Sinhazinha e o amo estavam atrás, abraçados um ao outro. O boi estava pouco à frente do pajé, que estava intacto, feito árvore. Os índios não paravam: os cantos se tornaram mais fortes, naquela linguagem indescritível. Não era o idioma indígena de costume deles. Percebia-se a diferença no sotaque e do movimento dos lábios.

Tudo se silenciou de repente. Pajé disse:

- Mais paciência, encontrei o espírito da cobra grande e ela me dirá onde encontrar o boi. Ele está perdido no mundo das almas dos animais.

Fez silêncio e os cânticos voltaram ao normal. Tudo era muito sincronizado: com certeza os índios também estavam no mundo dos espíritos dos animais juntamente com o pajé.

Os índios pararam novamente e a fogueira diminuiu seu fogo. O eco do silêncio encheu a fazenda.

O pajé se levantou calmamente, ajuntou as pernas e levantou os braços ao nível do peito. Abriu os olhos e sinhazinha percebeu que estavam totalmente brancos. Abraçou seu pai com mais força e teve medo.

- Tragam o boi para mais perto. Achei seu espírito. Convenci-o a ficar e trazer alegria para essa família novamente, felicidade que poderá ser eterna.

Os índios trouxeram o boi com certa dificuldade pelo seu tamanho (eram cerca de uns vinte), e o botaram defronte as pernas do xamã.

Com os braços à altura do peito e as palmas das mãos viradas para

baixo, balbuciou algo inaudível e todos os indígenas responderam em uníssono, fazendo tremer sinhazinha.

- É chegada a hora! Mais para longe, todos! Ele está chegando.

Todos os índios se afastaram, sinhazinha e seu pai ficaram ainda mais longe.

Deu-se um último grito e o boi, deitado no chão, começou uma branda levitação. Os olhos da sinhá moça se encheram d’água.

- Ele vai voltar, pai!

O boi se levantou mais e uma luz muito forte o envolveu. Todos tamparam os olhos para não se cegarem. Mas ela foi ficando mais fraca aos poucos ao ponto de ter possibilidade de poder ver o que se sucedia. A luz, que ainda brilhava, deu lugar a um pequeno cometa feito de luz florescente, que veio circulando desde o rabo do boi até sua cabeça, deixando rastros de luz cair sobre seu corpo.

Ouviu-se um estampido. O boi caíra de repente. Mas o barulho não correspondia ao seu peso: parecia uma coisa bem mais leve.

Todos os presentes acharam aquilo surpreendente. O que o espírito do boi resolvera fazer? Todos chegaram mais perto e o boi se levantou desesperado do chão, dando cabeçada nos índios e nos capitães que chegaram curiosos naquele momento.

Sinhazinha veio correndo e pulou de felicidade. Pulou muito mesmo. Apaixonou por aquilo que via. Mostrou-o ao seu pai entusiasmada, que também não acreditava em seus olhos.

O boi, agora que se apresentava feito de pano, pano muito fino, mais fino que todos os panos europeus, uma branco muito mais branco que as nuvens do céu e que também apresentava um coração muito vermelho na testa no lugar da ferida, veio correndo ao seu encontro, mugindo feliz. No outro mundo não encontrara uma ama como aquela. Sinhazinha o abraçou carinhosamente, chorando muito, passando a mão sobre aquele pano, muito surpresa com aquela manifestação do pajé.

- O espírito escolhe. Ele viu sua felicidade aqui ao seu lado, sinhá, e não quis abrir mão dela nunca mais. Boi feito de pano não morre.

Pai Francisco foi solto e participou da grande festa que o sinozinho dera naquela noite. Muita dança, muita música e muita gente dançando em volta do boi, que era o centro da festa e das

atenções. Mãe Catirina pode mostrar o filho ao seu marido e comemorar junto a festa do Boi da Promessa do pajé.
















(Baseado na lenda do boi-bumbá, que inspira toda a festa de Parintins no Amazonas.)

Um comentário:

  1. Muito boa esta reportagem, para que todos possam conhecer melhor sobre a origem da festa dos bois de Parintins... Gean

    ResponderExcluir