

-Nossa, mãe Catirina, tu sabes que to doidinho pra ver nosso filho, esse menininho tão pequeno e redondinho...
- Se estivesses mesmo, pai Francisco, faria o que estou te pedindo...
- Mas, mãe... Como irei arrumar isso agora?
- Ai... ai...
- Tá doendo? Vai nascer?
-Quero agora porque não quero ver meu filho nascer com cara de língua de boi.
- Mas já é madrugada...
- Quer ver nosso filho com cara de boi?
- Não! Deus me livre!
- Então consiga pra mim. Eu não tenho culpa de querer comer língua de boi. Bateu um desejo de repente e pronto.
- Não serve uma galinha?
- E o que galinha tem a ver com boi? Vá-se agora, homem. Senão nosso bebê nascerá um bezerrinho desmamado.
E lá se foi pai Francisco seguindo mata fechada, encoberto pelo manto da escuridão. Os sapos coaxavam na beira da lagoa, formando na floresta seu canto clássico do norte do Brasil. Esse senhor de média idade seguia pela estrada afora, intencionado chegar em alguma venda mesmo que fechada naquela hora da noite. Depois pensou muito e refletiu:
- Como saberei se é venda se está fechada? Se ao menos encontrasse um boi por aqui... Não seria certo, mas como deixarei a mãe com desejo de língua de boi? E se meu filho nascer um bezerrinho desmamado? Não... Acharei um boi nem que tenha que atravessar o rio Amazonas...
Como era muito pobre, não teria nem uma galinha caso ela tivesse desejo. De certo modo, de uma maneira ou de outra, teria de sair do mesmo jeito à procura do saciar do desejo de mainha. Mas uma galinha seria muito mais fácil de se pegar, agora uma língua de boi...
Lá se vai ele, caminhando estrada adentro. Passos lentos, olhar vivo e ouvidos aguçados. Na floresta de madrugada é perigoso: tem cobras, morcegos e outros bichos nada amigáveis.
Sair naquele horário foi um enorme perigo para pai Francisco. Seu amo não gostaria nada de ver um escravo seu rondando fora da fazenda. Tudo indicaria uma fuga e isso não traria benefícios para ele e nem para mãe Catirina. Seria castigado e seu filho correria o risco de não nascer. Pensou painho novamente e voltou para a senzala.
- Trouxe pra mim? Tô com fome...
- Sabe o que é, eu... eu...
- Não me diga que demorou tanto pra voltar com as mãos abanando?
- Não é isso, mainha. Fiquei com medo de trazer ele cá pra dentro porque tá tudo sujo de sangue e pensei que tu te assustarias. Então deixei o boi fora da senzala pra o sinhozinho não ver. Mas vou lá fora agora e trarei a língua dele para lhe matar a vontade.
Pai Francisco não teria escolha. Pensara nessa alternativa antes, mas queria ter outra opção, uma que deixasse menos zangado o amo da fazenda. Mas seu medo do filho nascer um bezerrinho era mais forte e, sem mais opções viáveis, saiu correndo, pulou a cerca do curral do sinhozinho da fazenda, escolheu o boi mais bonito, matou-lhe a pancadas de picareta bem no meio da cabeça e com uma faca bem amolada, arrancou-lhe a língua.
Com um saco de trigo, limpou todo o sangue das mãos e embrulhou a língua do boi para levar à mãe Catirina.
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Pela manhã, sinhazinha, com toda sua beleza de flor de idade, amarrou o chapéu bordado com flores de cetim à cabeça e abriu sua sombrinha toda confeccionada por uma artista adequado do ramo. Com certeza, era algo muito valioso, pois era muito bem talhada e envolve uma mão de obra minuciosa, não próprio de escravos. Devia ter vindo da Europa.
Logo depois do café, saiu às pressas para cumprimentar seu boi preferido.
- Minha querida, cuidado com seu vestido. Não vá sujá-lo. Custou muito caro a seu pai!
- Sim, minha mãe. Juro que não o sujarei.
Entrando de qualquer maneira no curral e lambuzando de barro toda a borda inferior do vestido, sinhazinha foi gritando o boi desde a porteira. Não se ouviu seu mugido como era o costume diário e nem suas cabeçadas na parede. Sinhazinha sempre entendera isso como um “bom dia”.
- Boi, boi, boi, boi, boi, boi...
As vacas, mascando seus capins diários, mal levantavam a cabeça para acompanhar a filha do amo delas.
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Sinhazinha se preocupou. Virou-se para trás e percebeu pegadas na porteira. Os estábulos se espalhavam em duas fileiras retas, colocando-se à esquerda e à direita por ali adentro, distribuindo-se uniformemente, dando vista para dentro dos estábulos logo ao chegar na porteira do curral.

Sinhazinha não via seu boi predileto, aquele que ela amava de todo coração. Seu “alojamento” com certeza estava vazio. E uma coisa a mais lhe deixava ainda mais perplexa: muitas pegadas no chão barrento do curral levava ao estábulo do boi.
Protegida pelo sol com sua sombrinha ornamentada, seus cachos loiros por debaixo do chapéu voaram ao vento quando correu para ver o que aconteceu com seu boi. Suas luvas brancas que protegiam suas mãos suaves e bem cuidadas caíram no barro quando ela abriu o estábulo.
- Pai, pai, pai... – gritava ela frenética, desconsolada, enraivecida e suicida – vem aqui, vem aqui. Olha meu boi, olha meu boi...
Todos os capitães da fazenda chegaram desesperados e desorientados. O que aquela menina viu pra ficar daquele jeito?
- Olhem meu boi, olhem meu boi, ah, meu boi querido, mataram ele.
Quanto todos se amontoavam pra ver o acontecido na porta do estábulo, chega o sinhozinho com espingarda à mão, lívido como uma cera.
-Que é que foi menina? Por que tiraste meus empregados de seus afazeres?
- Olha pai o que fizeram com meu boi, olha só pai. Que maldade fizeram, que maldade. Porque logo o meu, logo o boi mais bonito da fazenda?
Sim , aquele boi branco que um dia antes mostrava sua potente e exuberante beleza, agora tinha um furo na cabeça, a boca escancarada e sem língua, banhado com seu próprio sangue esparramado no chão barrento do estábulo.
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- Quero o culpado antes do entardecer, senão a cabeça de vocês é que vão rolar... Mas aquele capitão que me trouxer o desgraçado, serei generoso com ele.
Todos gostariam da generosidade do sinhozinho. Geralmente era um cargo maior com melhor salário ou um dinheiro extra. Todos os sete capitães a serviço do amo da fazenda se espalharam rapidamente, pulando as cercas do curral atrás do dito cujo. Mas um infeliz, tropeçando num barro seco, caíra de joelhos no chão, atrasando sua procura e causando-lhe um sentimento de que tudo se perdeu, que sua procura acabara ali.
Ao se levantar calmamente e tentando limpar os joelhos da calça surrada, viu marcas diferentes no barro seco do curral, algo totalmente diferente das botas dos capitães. Eram marcas de pés descalços. Sim, sentira que sua caçada ainda não terminara. Talvez um escravo teria pulado a cerca pela madrugada e matara o boi. Mas ainda não entendera porque lhe arrancara a língua.
- Qual o negro que teria essa audácia de matar o boi preferido da sinhazinha? – pensara ele.

Arrumou sua espingarda como de costume, e, sem pressa e com muito cuidado pra não desmanchar as pistas, foi seguindo as pegadas.
O capitão ficou ainda mais furioso ao ver onde elas davam: na senzala da própria fazenda.
- Um escravo daqui mesmo fez isso?
Correu até ela e chutou a porta violentamente. Todos os escravos estavam trabalhando com exceção de um: mãe Catirina. Ela estava deitada, pronta pra dar à luz e ao ver o capitão, sentiu muito medo e as contrações começara. Estava na hora do parto.
No chão, ao lado da cabeça de mãe Catirina, um prato de barro estava todo sujo com restos de comida e um molho escuro.
Desconfiado, perguntou a escrava o que era. Ela, com fortes dores, não respondeu. Pai Francisco lhe havia contado a verdade de que a língua do boi era o da sinhazinha da fazenda. O capitão então tomou o prato, provou a carne e teve certeza que aquilo era a língua do boi do curral.
Jogando o prato no chão, espatifando-o e correndo até a fazenda, o capitão informou ao sinhozinho onde achou a língua e que o provável matador do boi era o Pai Francisco.
Sabendo da notícia, o escravo foi chamado pelo dono da fazenda. Sinhazinha estava com ele para saber quem era o terrível assassino que acabara com a graça de sua vida.
- Porque fez isso, seu insolente? O que pensa que é? Não passa de um escravo que só serve pra trabalhar!
- Fiz isso porque mãe Catirina tinha desejo de comer língua de boi e eu tive medo do meu filho nascesse com cara de bezerrinho desmamado! Me perdoa, sinhozinho, não irei mais fazer isso!
- E quem disse que escravo é gente pra ter perdão? E quando escravo faz uma coisa errada, é uma vez só. Antes nascer com cara de boi do que escravo. Um boi tem muito mais serventia. Uma surra de setenta chicotadas e depois verei o que fazer contigo.

O filho de pai Francisco e mãe Catirina nasceu à tarde, com todo apoio dos escravos parteiros da fazenda, mas ao terrível som de setenta chicotadas que se espalhava por toda a fazenda.
Nessa noite, sinhazinha não conseguia dormir. Estava triste por seu boi e aborrecida pela covardia com pai Francisco. Também teria medo se seu filho fosse vítima de seu desejo e nascesse com cara de bezerrinho desmamado...
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