Discussão Dorense

Discussão Dorense

quinta-feira, 18 de abril de 2013

O EXORCISMO DE NATAN - capitulo 7

        Márcia aguardava na sala de espera. Os enfermeiros e médicos andavam pelo corredor do hospital com suas pranchetas e estetoscópios. Alguns demonstravam canseira e ansiedade, revelando o quão difícil é a profissão da área de saúde. Uns pacientes conversavam na portaria, outros aguardavam sentados uma consulta com o médico escalado para aquele dia.
        Dentro da sala de encefalografia, Natan estava deitado numa cama hospitalar enquanto duas profissionais colocavam fios grudados a uma massa mal cheirosa em diversos pontos de sua cabeça. Uma mulher mais velha esperava pacientemente na frente de um computador todos os eletrodos serem postos em seus lugares corretos.
        Natan era uma criança bonita. Ele não tinha essa consciência de beleza, mas provocava uma sensação de prazer de bem estar às meninas de sua idade até às mais velhas. Às vezes, ficava vermelho e envergonhado por ser encarado pelas garotas na escola e quando passava pela rua da sua casa. As mulheres brincavam, chamando-o de “menino lindo” e ele, muito tímido, costumava correr dos elogios. Era realmente um “colírio para os olhos” para quem o via e ele agora limpava a visão problemática da programadora do encefalograma, que portava um óculos feio com lentes tipo fundo de garrafa.
        Infelizmente, problemas todas as pessoas do mundo tem. Não só pessoas, coisas e animais irracionais também nunca escapam de caminhos tortuosos. A água seca, animais selvagens lutam no dia a dia para se alimentarem e homens batalham contra doenças. Natan, criança, partilhava do amadurecimento adulto precocemente. Com 9 anos passava por dificuldades e seu corpo sofria como qualquer adulto já sofrera.
        Estava calmo naquele momento. Não podia tomar sedativo pois alteraria o resultado final do exame. A mulher o aconselhou a não dormir porque o exame seria rápido e o sono atrapalharia as ondas cerebrais, podendo interferir na leitura encefalográfica. Ele estava deitado, muito quieto, olhos inertes visando o teto, realçando de alguma maneira o roxo em torno de suas pálpebras. Não sabia a muito tempo o que era dormir e muito menos o que é um verdadeiro descanso.
        A porta foi aberta e Márcia foi chamada.
        - O exame está feito. O médico lhe chamará quando o resultado estiver em sua posse.
        Cabisbaixa, ela assentiu sem dizer palavras.
        Entrou na sala de exames e ajudou Natan no toalete a lavar sua cabeça suja daquela massa mal-cheirosa e grudenta.
        Ficaram à espera no corredor do hospital. As luzes do corredor foram se acendendo devido à escuridão invasora quando a programadora saiu com um envelope grande e branco da sala. Ela bateu três vezes na porta do consultório interno do hospital e entrou. Demorou-se por lá uns dez minutos e saiu, adentrando-se pelo hospital, numa daquelas enormes portas de vidro, gerando um reflexo grande e tortuoso quando caminhava frente a ela.
        Sequer passara cinco minutos e o médico chegou à porta.
        - Natan?
        O garoto o olhou sem vida. Márcia estremeceu com o comportamento de seu filho, pegando-o pela mão e andando calmamente até ao consultório.
        - Sentem-se, por favor – disse o doutor, sentando-se também na sua cadeira de madeira velha. – Pelo o que as enfermeiras me disseram, parece que o seu filho está tendo alucinações e distúrbio de personalidade. Você confirma isso?
        Márcia balançou a cabeça positivamente.
        Tinha ali na mesa um cartão e nele o nome do médico: Aloísio Trindade, Neurologista. O endereço abaixo e o número do telefone fixo estavam destacados em negrito e itálico.
        Tirando o resultado do envelope e observando cada página atentamente, todos aqueles riscos incompreensíveis para Márcia a deixavam aflita. Doutor Aloísio mexia a mandíbula como se estivesse mastigando algo, brandamente. Na última folha do exame, ele pega o telefone.
        - Teresa, poderia vir aqui, por favor?
        Num instante, a porta do consultório se abre. Uma enfermeira loira, de média estatura e muito bonita, cabelos cacheados, olhos azuis e usando um batom rosa claro se aproxima de mesa.
        - Poderia levar nosso rapazinho aqui para a cozinha, por gentileza? Dá pra ele aquela gelatina toda especial. Ele vai adorar o gosto de limão com leite condensado.
        Ela o olha com ternura e pega na sua mão.
        - Então vamos?
        Márcia a encara, assim como faz o mesmo com o médico. Aquela sutileza de o tirar do consultório certamente não era previsão de boa notícia.
        Assim que saíra, doutor Aloísio recostou-se à vontade em sua cadeira, pensou bem e iniciou seu monólogo:
        - Pelas atitudes de seu filho, pelas suas variações de personalidades e pelo que vejo em sua ficha, eu presumia um início de epilepsia. Essa doença em si não é psiquiátrica, mas temos de ter um ponto de partida para descobrir todos esses problemas. A senhora conhece a epilepsia?
        -Sim. – respondeu ela, secamente – Já vi uma amiga minha ter uma crise. Meu filho não teve nenhuma crise epilética, doutor. Mesmo se tivesse, essas coisas que andam acontecendo não têm nada a ver.
        - Sim, eu sei. Mas a epilepsia pode levar à depressão. Essas doenças estão muito ligadas e a depressão tem sintomas diferentes, variando de pessoa pra pessoa. Eu desconfiava de seu filho estar iniciando uma depressão precoce, devido à sua idade. Poderíamos iniciar um tratamento adequado se não fosse os resultados...
        - Como assim? – perguntou Márcia, simbilando em sua voz.
        - O resultado não deu nada.
        Márcia temia justamente isso. Queria furiosamente que o exame desse qualquer coisa e que a solução para os problemas se resolvesse em algumas caixas de Tegretol e Depakote. Ela temia as variações do humor do filho não fosse uma doença, mas algo muito mais além. Tinha medo em buscar ajuda nada casuais, porém ainda se apegava à medicina até aos últimos casos.
        - Então, o que o senhor me indica? Isso tem que ter um jeito. Meu Natan não está nada bem e ele fez coisas terríveis. Não quero que ele continue desse jeito.
        - Bem, dona... – o doutor olhou a ficha – Márcia, eu pesquisei sobre o seu filho e vi nas reportagens o que ele fez no Grupo Hospitalar. Temos aqui no São Pedro bons psiquiatras para o seu tratamento. Não seria nada bom ele continuar assim. É bom também acompanhamento psicológico para saber o que o está levando a essas atitudes tão extremas e perigosas. Pode ser algo psicológico. Nos exames não constou nenhum dano nas ondas cerebrais, o próximo passo seria um tratamento, digamos, espiritual.
        Márcia mudou as feições do rosto. “Sim, espiritual”. Ela ficou com o olhar distante a pensar num verdadeiro tratamento espiritual.
        - E se ele visse, assim, um pastor? Tenho um na minha igreja que é ótimo para dar conselhos.
        Doutor Aloísio se incomodou muito com a opinião dela.
        - Isso não é uma boa ideia. Melhor seria um psiquiatra.
        Márcia o encarou bem e redargüiu:
        - O que os médicos não conseguiram, Deus irá prover. Ele é o todo-poderoso e com ele tudo podemos.
        O médico estava acostumado com essas opiniões vindas de religiosos devotos e também com a ajuda da fé na cura de alguns pacientes.
        Como estava arqueado um pouco para frente, ele recostou-se à vontade na cadeira e levantou os braços, num sinal “lavo as minhas mãos”:
        - Muito bem, o filho é seu. Nem sempre a religião pode ajudar as pessoas, principalmente nesses casos. Ainda a verei novamente e pode estar certa que estarei aqui para ajudar.
        - Muito agradecida, mas tenho a melhor ajuda do que qualquer um poderia ter.
        Doutor Aloísio deu de braços e Márcia saltou da cadeira, pondo-se para fora do consultório, batendo a porta.

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        No outro dia, bem pela manhã, Márcia ligava do prédio no qual estava hospedada, no centro de Porto Alegre.
        - Pastor Eduardo?
        - Sim? – respondeu uma voz aguda, meio rouca, carregada de sono.
        - Me desculpe ligar assim tão cedo. Aqui é a Márcia, da igreja.
        - Márcia? – indagou o pastor, não recordando muito bem.
        - Sim, a Márcia.
        - Ah, sim,  - respondeu ele, reconhecendo a voz e envergonhado de seu devaneio – O que aconteceu, minha filha? Não tenho te visto nos cultos. Tudo bem com você? E o seu filho?
        Com tantos questionamentos e pelo tom da voz, percebia-se o interesse do pastor pela a saúde de seu filho.
        - Er... Na verdade, pastor, as coisas não andam muito bem. Estou tendo muitas complicações com o Natan.
        O reflexo do sol poente batendo sobre o balcão de vidro fazia Márcia esconder o rosto com a mão. O movimento dos hóspedes se intensificava a cada minuto no hotel. Uns reclamavam do elevador quebrado enquanto uns do lado de fora gargalhavam.
        - Não sei, pastor. Recorri a todos os métodos possíveis: fui nos médicos, fiz exames. Nada explicou o comportamento do meu filho. Eu queria que você o visse agora. Esgotaram-se minhas alternativas.
        Houve um breve silêncio do outro lado da linha.
        - Como assim? Eu não sou médico, minha filha.
- Eu sei que o senhor não é. Estou desconfiada desse problema dele. Tá parecendo ser outra coisa.
Ouviu-se um bocejo do outro lado. Pastor Eduardo não dormira bem à noite em virtude de pesadelos estranhos, problemas carregados desde sua infância.
- Realmente, não estou entendendo como “EU” posso ajudar. Não é má vontade, mas a única maneira e com certeza muito eficaz seria orar por ele. Se eu soubesse de suas dificuldades antes, eu já estaria intercedendo junto a Jesus.
- Eu sei disso, pastor. Mas gostaria muito de sua visita e que o visse pessoalmente.
Outro silêncio na linha.
- Estou com muitos compromissos hoje, Márcia. Tenho problemas da igreja e meus também, todos pedindo para serem resolvidos ontem. Você me entende? Onde você está?
Márcia dera um suspiro, levou o gancho do telefone ao peito, levantou a cabeça para os céus, mirando o lustre transparente do teto do primeiro andar do hotel e fechou os olhos por um momento.
-         Alô? Márcia? Ainda está aí?
Um zumbido incomodou o tímpano do Eduardo, como se estivessem esfregando um pano de tecido grosso no microfone do aparelho.
- Sim. Estou aqui.
- Onde você está?
 - Estamos em Porto Alegre.
- Se estivesse mais perto... Eu não mediria esforços e iria com certeza. Posso saber do que se trata?
Márcia estava com a alma enfraquecida. Não queria contar ao pastor as suas conclusões até agora. Queria conversar pessoalmente, queria desabafar, chorar ainda mais.
Precisava de um ombro amigo e confidente e o pastor Eduardo possuía o perfil perfeito.
- Natan está doente da alma. – respondeu ela.
                Era o máximo que podia responder, afinal. Por mais que pensasse, essa era a única resposta satisfatória para o pastor por meio de uma conversa à distância.
        - Ah, sim. Compreendo bem. Esse mal requer muito a ajuda de Deus e quanto antes o procurarmos, melhor será para seu filho. Eu não vou lhe desamparar e muito menos o nosso pai eterno.
        Márcia se animou ao ouvir o comentário do pastor. Ele enfim percebia de suas necessidades e nem precisou ser tão clara, poupando-a do constrangimento de comentar problemas pessoais por telefone próxima de ouvidos curiosos.
        - O senhor vai vir?
         - Infelizmente não poderei ir, mas lhe indicarei um pastor que ministrou um curso de Teologia para mim na qual me possibilitou ministrar a igreja daqui. Ele é de Porto Alegre mesmo. Um homem muito competente, honesto, de uma inteligência enorme. Ele também é formado em psicologia e entende muito de depressão. Ele irá ajudar muito no caso do seu filho. Tem caneta e papel?
        Márcia anotava com um semblante decepcionado o nome e o número do pastor. Eduardo não entendera a doença de seu filho como uma provável possessão, mas como uma doença corriqueira e comum. Ela não queria psicólogos. Ela queria ver um pastor como um pastor, capaz de expulsar entidades e dar tranqüilidade para a família para o resto da vida.
        “Pastor  Jó”, dizia um pedaço pequeno de jornal velho que Márcia anotara. Bem embaixo, seu número sem o DDD. Ela olhou bem o papel e o número. “Nome bem bíblico. Não poderia ser outra pessoa senão um pastor” – pensou ela. Teve ânsias de o amassar e o jogar na lixeira da portaria, junto às latas de refrigerante e garrafas descartáveis de água. “Não custa nada. Quando ele vier ao meu apartamento, eu conto a história e ele com certeza irá me entender.”
        Ao se virar para tomar rumo ao seu quarto, pessoas corriam assustadas, gritando umas com as outras enquanto alguns da portaria perguntavam curiosos o que se sucedia.
-         Tem um demônio no quarto 14. Nunca vi alguém gritar daquele jeito.
        Márcia correu logo escada acima, como a chave na mão, esbarrando com força nas paredes . Os hóspedes falavam um com o outro, conversando num tom relativamente médio, possibilitando Márcia ouvir e subir ao seu quarto apressada.
        -Saiam todos daí. Meu filho está doente e vocês saem falando para todo mundo que tem um demônio aqui! Saiam logo, saiam!
        Os mais velhos murmuravam da falta de educação daquela mulher. Os adultos saíram cabisbaixos e nem sequer a encaravam.
        Entrou e bateu a porta com toda a força a porta. Girou a chave duas vezes e correu para o quanto, onde deixara Natan amarrado à cama por dois panos grossos à cabeceira e aos pés da cama. Ele estava imóvel.
        Ao vê-la na porta do quarto, Natan continuou com seus urros, ora agudos, ora graves. Às vezes chorava, mas também gargalhava como um louco.
        - Para com isso, Natan – gritou Márcia. – Você está assustando todo o prédio!
        Ele levantou o pescoço lentamente e parou com os gritos. Olhou sua mãe, girou um pouco a cabeça para o lado, deixando mostrar a marca roxa em seu pescoço, como se mãos fortes o tivesse enforcado.
        - Who are you? – perguntou Natan, com sua voz gasta e falhando.
        Márcia não respondera. Ele sabia muito bem que era sua mãe ali, com lágrimas nos olhos.
        - Gesù Cristo non sei qui, mama mia. Io sto. Io. Resta con me e ascolta la voce del diavolo.
        Ela tampou a boca e se sentou no chão. Com as mãos na boca para cobrir os soluços, olhava estarrecida para a cama pulando com a força dos pulsos de Natan.
        - Quiero morir. Quiero morir. – gemia ele, rindo e sacudindo com força a cama do pequeno quarto de solteiro.
        O sangue de seus pulsos pingava no tapete marrom do quarto. Márcia não tinha forças para se levantar, percebia somente o piso gelado sob suas nádegas lhe entorpecendo calmamente as pernas. Não havia nada a fazer.
        Natan silenciara-se e o quarto todo ficou com um zumbido inquietante. O eco de sua voz retumbava pelas paredes. Márcia agarrou com força seus cabelos e escondeu a cabeça entre as pernas. Sua calça jeans estava ensopada de suor e lágrimas e o chão todo manchado com a marca de seus pés descalços. Ele havia retirado a sapatilha e nem havia percebido.
        Uma saliva saía da boca do menino enquanto ele dormia como um louco amarrado num manicômio, tremendo todo o corpo de minuto em minuto, envolto numa espécie de crise nervosa.

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        - Pastor Jó?
        - Pois não?
- Quem fala é a Márcia. O pastor Eduardo de Hulha Negra me deu o seu número caso precisasse de sua ajuda.
- Diga, minha amiga. Estou todo ouvido. Eduardo sempre será um grande amigo meu e os amigos dele serão os meus também. Deus não desampara e eu tento acompanha-lo
- Meu filho está muito doente, doutor. Poderia vir aqui em casa para conversarmos melhor? Não gostaria de falar desse assunto por telefone.
- Sim, com certeza. Qual o seu endereço?
 - Avenida Vargas. Prédio Ipojuca, apartamento 14. Irá demorar muito?
 - Estou perto. Estarei no prédio daqui meia hora. Poderia me receber na portaria?
- Sim, senhor. Estarei lá.
Uma conversa breve. Tudo decidido. Jó, com espírito contemplativo e estimulante, sempre estava disposto a ajudar. Márcia percebera tudo isso pela conversa e pela voz calma e branda do pastor. Ele conversava como estivesse numa oração serena, firme e disposta, como quem saía para o deserto da alma a fim de reflexão e meditações. Toda essa energia transmitida para Márcia pelo telefone fê-la disposta a confiar mais em si e em Deus. Nada havia acabado para ela e nem para Natan.
Por volta das seis e meia da tarde Márcia, trajando uma calça jeans e uma camisa de malha azul, aguardava o pastor na portaria do prédio. Demonstrava inquietação, nervosismo. Sua cabeça girava para olhar o relógio imnportado da China pendurado acima da imagem de Maria, sobreposta acima da porta do elevador quebrado.
- Dona Márcia?
Ela girou o pescoço pra frente e se deparou com uma figura jovial, de cabelos escuros e olhos castanhos. Tinha no máximo trinta anos. Seu sorriso poderia alegrar a tristeza em si e no entanto, Márcia não concluiu  outra coisa além de esperanças e um recomeço divino em sua vida.
- Pastor Jó? É mesmo você?
- Porque  a surpresa?
- No telefone parecia ser uma pessoa... – ela hesitou.
- Mais velha?
Márcia sorriu desconcertada.
- Sim.
- Não esquente – emendou ele – todos falam o mesmo.
Jó sorriu novamente. Ele realmente era a pessoa que Márcia mais precisava agora. Alguém feliz, um homem da Palavra e irradiante como o sol.
- Podemos entrar?
- Sim, como não.
Na porta do apartamento, Márcia oferecia algo ao pastor.
- Água, por favor. Estou com muita sede. O calor dentro do ônibus estava escaldante.
Voltando com o copo em mãos, ela olha Natan pela fresta da porta. Ele a encarava com os olhos esbugalhados de pavor. O suor minava de sua testa e suas pernas mexiam com leveza no colchão.
 -Em que posso ajudar, dona Márcia? Quais são os seus problemas?
Sentada ao sofá, com as pernas cruzadas, montava as peças do quebra-cabeça da sua vida nas últimas três semanas. Por onde começaria?
- Como Deus pode ajudar em suas aflições?
Márcia gaguejou na primeira frase. Parou um pouco, encarou o pastor, descruzou as pernas.
Assim tomou firmeza e contou toda a história: desde os fatos, até a sua convicção de que Natan estaria possuído.
Jó demonstrava interesse e nenhum momento da conversa alterou o semblante: permaneceu sereno e não interrompeu o relato para meras opiniões.
- O que acha? O demônio realmente pode estar no corpo dele?
O pastor coçou o queixo, espetando a ponta dos dedos com sua barba pequena e rala.
- Pouco provável. Possessão demoníaca é coisa do passado, bem típico da época de Cristo e da Idade Média. Na era Moderna, com o avanço da Medicina e da ciência conseqüentemente, descobriu-se várias doenças e o exorcismo foi “exorcizado” praticamente. Muitas pessoas na época de Cristo sofriam de epilepsia e eram julgados pelos sacerdotes como possuídos. Cristo mesmo curou doentes pensando ser eles possuídos pelo demônio.
 - Nem me fale dessa doença.
- Porque?
- Fizeram exames no meu filho para ver se portava a disritmia, mas os resultados apontavam negativo.
- Isso é muito bom.
- Fiquei desencantada com a medicina. Eles pedem pra ir aqui, ir ali. Preferi pedir ajuda no lugar certo de uma vez. A ajuda de Deus.
- A senhora faz muito certo de procurar Deus. – disse Jó, tomando o resto da água. – Eu, sinceramente, acho um equívoco enorme dizer que seu filho está possuído. Ele deve ter uma doença rara e a senhora deveria procurar mais a fundo isso.
- Não quero. Se tivesse atrás de um médico, estaria num consultório agora ao invés de estar aqui falando com você. Venha ver meu filho e tenho certeza que mudará sua opinião.     
Márcia se levantou primeiro, vindo Jó logo em seguida, caminhando calmamente ao corredor estreito que levava à cozinha.
Ela abriu a porta para os dois entrarem. Fechou-a logo em seguida, cuidando para fazer pouco barulho.
Natan dormia profundamente. Percebia-se pela primeira vez nos olhos de Jó o medo e a desconfiança.
 - O que você andou fazendo com seu filho? Olhe o seu estado...
Márcia, longe da cama ao canto do quarto, falou em sussurro:
- Se não o amarrasse, ele teria feito coisas bem piores daquelas que te contei.
O pastor já fora chamado diversas vezes por pais e mães aflitas desconfiadas de casos de possessão. Nunca vira uma criança amarrada, com marcas em todo o corpo e com o pulso sangrando.
- Ele precisa ir a um hospital agora. Olhe os pulsos dele. Em breve terá uma anemia, Márcia. Isso é covardia e maus tratos ao menor!
- Ache o que quiser, pastor. Primeiro vá até ele, tente falar alguma coisa de Deus para ver sua reação. Não o levarei no hospital novamente até ter certeza que meu filho não está possuído.
Jó sentia a firmeza nas palavras de Marcia. Sentia seu pulso forte, sua convicção e até uma certa indelicadeza.
Ele estava ali para ajudar. Tentaria conversar com Natan a pedido de sua mãe, enfim, sua função na vida era senão atender aos desígnios de Deus, colaborando e salvando almas de quem mais precisava.
Ele se aproximou na cama e teve náuseas. Não havia percebido ao entrar no quarto o forte fedor de urina, tamanho o horror ao ver a situação daquele menino na cama.
Esticou o dedo indicador para tampar o nariz e colou os olhos na marca roxa no pescoço do garoto. Sentou-se na cama, arredou os lençóis mau-cheirosos e engoliu o vômito que lhe subia pela garganta.
- Natan? Você está acordado?
O menino, virado do outro lado da cama, abriu os olhos. Jó ficou ereto para ver o seu rosto.
- Podemos conversar? Sua mãe está logo ali, contigo. Não precisa ter medo.
Natan, com o rosto afundado no travesseiro, balançou negativamente a cabeça.
- Vamos fazer o seguinte: vou desamarrar a sua mão pra gente conversar um pouco. A gente vai se sentar e vamos falar de como você está se sentindo, tá bom?
Jó recebeu um aceno positivo de cabeça.
Márcia não saiu do canto. Olhava o pastor desamarrando com toda sua força os panos grossos , ora com toda a mão, ora com a ponta do dedo.
- Se eu fosse você não faria isso. – advertiu ela.
Arfando com força, Jó a olhou mas não disse nada.
- Ele não pode ser desamarrado. Depois eu não conseguirei amarrar novamente. Eu só consegui prendê-lo porque ele estava sedado. Ele poderá fazer coisas graves com as mãos livres.
O pastor continuou o trabalho. Após quinze minutos, ele passou para o outro lado da cama.
Sobre Natan deitado, ele tentava desamarrar o outro pulso. Suas mãos estavam muito cansadas, dificultando o desatar daquele nó enorme e muito bem amarrado.
Natan sentia o sacolejar frenético de Jó sobre si. Sentia sua mão direita livre e a esfregou com força sobre o colchão macio, certo de ainda possuir o tato.
O pastor queria ver aquela criança inocente livre daquelas amarras. Queria falar para Natan, transmitir-lhe a Palavra e demonstrar-lhe a grandiosidade do amor incondicional de Deus para com ele e sua mãe. Ele era escravo e agora se tornava livre, como o Pai Eterno criara o Universo.
Natan balançava o braço, tentando retirar a rigidez do bíceps. Jó suava sobre o cobertor, tentando a todo custo desamarrar o outro braço gastando todas as suas forças.
- Deus irá prover, Deus irá prover!
Márcia soltou um grito ao ver Natan, de punho fechado, acertar em cheio um soco certeiro e bruto na orelha do pastor, fazendo-o cair da cama, gemendo de dor.
- Natan, não faça isso! – esbravejou Márcia, acudindo Jó ao chão, que falava coisas inaudíveis esfregando a orelha vermelha com a mão.
- O senhor está bem?
Natan fixava os dois ao chão: Jó, com o rosto virado para a porta do quarto; Márcia, ajoelhada, tentava de alguma maneira ajudar a dor lancinante do ouvido do pastor.
Ele nem sequer falara nada. Só o agrediu por uma vontade súbita, talvez um jeito de aliviar a tensão por ficar tanto tempo deitado. Seu olhar frio, calculista, tragava as vontades da mãe pelo seu comportamento e extirpava todas suas boas intenções.
- Isso mesmo, puta! Cavalga no pau dele porque estou a fim de um show particular hoje. Me dá esse prazer já que essa espelunca não tem nada para beber.
Márcia pulou sobre a cama e esbofeteou Natan, fazendo-o cair desacordado. Ele mexia a cabeça freneticamente como um louco perdido, ora fechando os olhos, ora gargalhando e chorando logo depois.
Ele parou de repente quando o pastor se levantou do chão. Olhou-o, se encolheu para trás e suplicou para a mãe:
- Não deixa ele vir aqui, mamãe. Ele é mau!
Márcia, cansada de tudo aquilo, daquele teatro todo, das variações de humor de seu filho, de sua dupla personalidade, chorava e sentia tonturas. Deu uma dor de cabeça tão forte que não suportou: caiu desmaiada da cama, batendo com a cabeça no piso frio do quarto de Natan.

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- Márcia, Márcia...
Com a cabeça doendo e com dores no pescoço, Márcia se deparou com a imagem de Jó, sentado ao seu pé no sofá da sala do apartamento. Ele ainda punha a mão no ouvido, exprimindo dores ao franzir as sobrancelhas.
Ela estava deitada. Virou-se um pouco e deitou os dedos no tapete da sala, sentindo um copo ali. Olhou, sentiu sede e tomou a água que tava nele, saciando o mal-estar na garganta.
- Por quanto tempo eu apaguei?
- Cinco minutos, no máximo.
- Como está Natan?
- Eu o amarrei novamente. Ele está acordado mas ausente do mundo.
Márcia, com a mente toda embaralhada de pensamentos, custou a reunir alguns tópicos, no mesmo tempo que se levantava para se sentar ao lado do pastor.
- O que o senhor acha? Ele pode estar possuído?
- Senhora, o que o seu filho precisa é de um psiquiatra. Ou psicólogo, também pode ajudar. Ele está com problemas seríssimos e eles devem ser tratados adequadamente. Eu não posso fazer nada além de orar. Me desculpe.
- Você é psicólogo. Olhe meu filho como um profissional, já que não quer olhar como pastor.
Jó ignorou completamente a provocação de Márcia. Levantou do sofá, desamarrotou a calça social com as mãos e saiu imediatamente sem ao menos despedir-se. Márcia não acreditava nisso.
        - Meu Deus! Me ajude, fui abandonada! Nem um servo seu quis me ajudar!
        E chorou copiosamente. Chorou as amarguras da alma, chorou as tristezas de mãe. Como ficaria seu filho, saído de suas entranhas, a qual cuidou tão carinhosamente e de tanto futuro pela frente? Seria agora o fim?
        - Levarei meu filho novamente no médico. Nem que eu vá até ao fim do mundo, terei meu filho de volta.
        Na sexta, pela manhã, um táxi parava em frente ao prédio. Márcia saía com Natan enrolado em cobertas, pois não queria que ninguém visse suas mãos amarradas pelas costas.
        - Por favor, me leve nessa rua?
        Entregou um pequeno pedaço de papel todo amassado ao motorista idoso, que consentiu com a cabeça ao ver o endereço.
        Os prédios passavam pela visão de Márcia como uma grande selva de pedra. As casas eram as palmeiras, os arranha-céus as figueiras troncudas e fortes. Os mendigos deitados na calçada no centro da cidade eram as presas fáceis para os tigres e onças devoradores de dignidade.
Uma fila enorme cruzava uma esquina logo adiante, findando-se no caixa da Casa Lotérica. Enfim, o prêmio estava acumulado em doze milhões de reais.
        O rádio do táxi tocava Adriana Calcanhoto, num som bem ambiente. “Entre por essa porta agora, e diga que me adora, você tem meia hora...”. Ao cruzar uma esquina à esquerda, a rádio perdera o sinal, fazendo o motorista mudar de estação, penetrando o automóvel com um som de João Bosco e Vinícius. Era um dueto típico de cantores caipiras mesclado à composição moderna de sertanejo universitário.
        Uma mulher jovem passava com sua blusa de couro, um gorro felpudo bem grosso e as mãos enfiadas nos bolsos da calça jeans. Sua tiracolo era de um cinza bem claro, destacando as fivelas grandes e amarelas, refletindo a luz do sol nascente.
        Todos esses detalhes da manhã de Porto Alegre descansavam o espírito de Márcia. Nunca vira a cidade como via agora, tão calma e atraente, tão em paz. Era provável que o inferno se deslocara do fundo da terra para a sua vida. Respirava profundamente o ar fresco da manhã dentro do táxi, mas coçou o nariz quando penetrou junto com o ar o fedor expelido dos canos de descarga dos outros carros na avenida. Era um aviso: nem sempre tudo é tão bom e tão mal. Sempre há um meio termo. Yin yang.
        No trânsito, a correria tinha início. A maratona dos trabalhadores começava a fervilhar: carros buzinando, motos em alta velocidade, pessoas andando e falando pelo celular.  Típico de uma metrópole, capital de um estado considerado o que fornece melhor qualidade de vida à sociedade. Porto Alegre, além de ter clima parecido com  países europeus onde há regiões que nevam, portava grandes características culturais do Velho Mundo, principalmente da Itália, como restaurantes com comidas típicas desses país e produção de vinhos de primeira, fabricado por descendentes de imigrantes.
        Foi perto de um desses restaurantes onde o táxi fez sua parada. Com dificuldades de tirar Natan no colo, o motorista fez o que pôde, saindo lento do banco de motorista para ir até à porta de passageiro, abrindo e facilitando a saída de Márcia e o garoto.
        - Obrigado. Tome seu dinheiro.
        Enfiou a mão no bolso e entregara uma nota de cinqüenta ao senhor. De óculos e meio trêmulo, ele desliza a mão no bolso de trás da calça e retira sua carteira nova de curvim, voltando um real de troco a mais por não ter pratas. Fez um aceno com a mão, agradeceu, caminhou até na frente do carro, observou os dois lados da avenida e entrou no táxi, dando a partida e seguindo seu destino de aposentado trabalhador.
        Diante do movimentado “Cocina Italiana”, Márcia sentiu o cheiro forte do café. O balcão dentro do restaurante, feito de cedro, era pintado com as cores da bandeira da Itália, desenhado por cima uma boca grande com a língua para fora lambendo os beiços. A propaganda não era grande coisa, mas pelo asseio dos funcionários e pelas vestimentas das pessoas zanzando ali dentro, o lugar era famoso e bem conceituado. Todos os garçons usavam camisa social branca, gravata borboleta e aventais com as cores da bandeira da Itália e aquela boca horrorosa, parecendo divulgação da revista Playboy ou do Rolling Stones. A calça era social e preta, dessas compradas em bazares por ninharia inferior a vinte reais. O restaurante era grande e tinha por volta dez garçons, contando entre homens e mulheres, assemelhando uma única coisa entre eles: a jovialidade. Não tinham mais que vinte anos cada um e todos prezavam pelo emprego, trabalhando com entusiasmo e destreza.
        O consultório do doutor Federico, pela descrição da secretária, ficaria logo do lado desse restaurante. Era uma casa, à primeira vista. Com uma cor alaranjada forte destacando a fachada e com a mesma cor de menos intensidade em torno das duas janelas, expressava um sentimento de casa recém-construída aos olhos virgens daquele bairro. Uma cor chamativa, bonita, dá a conotação de “novo” ou uma construção jovem. A porta, não diferentemente na cor, ficava bem ao meio das duas janelas, com dois degraus para dar acesso ao seu interior. Entre a janela esquerda de quem entrava e a porta, uma placa maciça, bem esculpida e talhada como um pergaminho da era cristã, dizia: “ Federico Zülmer – Psicólogo”.
        Uma senhora gorda saiu do consultório, esquecendo a porta aberta. Esse psicólogo era famoso por solucionar casos de obesidade tendenciosos à morbidade sem utilização de qualquer método medicamentoso. Além de psicólogo, Federico era formado em Medicina e especializado em Psiquiatria, o que lhe dava respaldo para tratamentos químicos. Vendo na Psicologia uma alternativa saudável para tratamento, ele seguiu o doutorado e ganhou renome nacional em tratamentos não-quimioterápicos.
        Aproveitando-se do descuido da senhora, Márcia apressou-se a entrar para o consultório com o filho no colo. Para sua sorte, havia somente uma paciente à espera. Praticamente uma adolescente, a garota não conseguia ficar cinco segundos na cadeira. Negra e esguia, ela passava a mão freneticamente nos cabelos crespos, esfregava o queixo no peito e enfiava o nariz por entre os dedos, suspirando forte. Às vezes, ela parava defronte à tv de LED pequena do consultório e a encarava, sem piscar. Girava o pescoço lentamente para um lado e para outro, até sair dando dois pequenos pulos pra trás e vindo se sentar novamente. Uma senhora a acompanhava, parecia ser sua vó. Ela bordava e todo o frenesi de sua neta não a incomodava. Trabalhava bem os pontos, cruzava as duas agulhas grandes de plástico azuis escuras, fazendo o novelo tomar forma de um enfeite para mesa de cozinha. Tão bonito aquele trabalho!
        Márcia sentiu um calafrio. Onde quer que fosse, havia loucos a rodeando. Eram  de todas as idades, de várias classes sociais, de várias etnias. A loucura não escolhia a quem possuir, com quem acabar. Ela era a desgraça e com ela não havia alternativa: a cada arma contra ela, sempre uma contra-investida com força de esmagar e reduzir ao pó.
        Ela deitou Natan numa poltrona. Dirigiu-se até à secretária distraída com anotações em fichas de controle de pacientes e fez um “hum-hum” com a garganta, dando um choque na funcionária, totalmente envolta no trabalho.
        - Pois não, senhora.
        - Tenho hora marcada com o doutor agora, às dez.
        - Deixe-me dar uma olhada. -  a secretária, uma jovem bonita de olhos cor-de-mel e cabelos claros, tirou de dentro da gaveta da mesa uma agenda de capa de couro preta com marcador vermelho.
        Olhou os horários e confirmou.
        - Natan Romualdo Campos – disse Márcia, ao ver a secretária procurando o horário das dez.
        - Sim. Pode se sentar e aguardar, por favor.
        Márcia andou até a poltrona, sentou-se ao lado de Natan envolto em grossos cobertores e dormiu profundamente.
                                                                                                                                     
       

O EXORCISMO DE NATAN - capitulo 6

        Seu Antônio, como era chamado, tinha oitenta anos quando faleceu. Morrera no quarto infarto de sua vida sossegada e tranqüila. Um senhor esperto, mente aberta, firme de pernas e braços. Compreendia e interpretava boas coisas das quais lia, enfim, era um homem esperto para sua idade.
         Tivera somente duas filhas. Mônica, a mais velha, nascera no período mais negro da história do Brasil: na ditadura. Nascera em dezembro de 1964, com o hospital cheio de policiais arrastando os comunistas para dentro dos camburões e para carros pequenos. Sua família não era do tipo socialista, mas em segredo não admiravam o serviço secreto, fingindo estar sempre amenos a tudo o que se passava.
         Levava a vida em dificuldades. Seu Antônio sempre se acostumara a comer o que plantava, sendo o arroz uma comida fina daquelas em que se come no Natal para celebrar com toda a família. O inhame, couve, frutas mais comuns daquela região como uva, pêssego e laranja do mato faziam parte do cardápio familiar, fazendo daquela família pobre rica em saúde e disposição. Carne, uma vez por mês. Com ajuda da aposentadoria de Dona Maria, sua amada esposa, conseguia comprar dorso de frango nos quartos e quintos do mês, quando a aposentadoria saía. Chegava em casa com a sacola branca e molhada de suor do dorso congelado, cheio de apetite antes mesmo de sua mulher jogar toda a compra na panela alumínio velha e preta do fogão a lenha.
          Dona Maria era uma exemplar dona de casa, até cair na cama com problemas intestinais. A virose atingiu mais de 40% da cidade, fazendo o hospital lotar seus leitos e chamar com urgência ambulâncias das cidades vizinhas. Infelizmente, grande parte dos idosos de Hulha Negra veio a falecer. O funeral, feito no clube do município, apresentou mais de trinta urnas, deixando na memória hulhanegrense a maior tragédia ocorrida desde a fundação da cidade. A família de Antônio chorava a morte da mulher de casa, daquele pilar moral fortificante da casa. Toda ela estava no clube, unida em tristeza junto a outras famílias. Pessoas trançavam entre as urnas, conversavam com seus parentes em tons fúnebres; outros berravam em desespero. Sob algumas, um punhado de sal estava colocado, uns com intenções de conservar o corpo do parente e outros, para espantar maus espíritos, para a alma subir para o céu em descanso.
         Seu Antônio estava encostado à parede no fundo, segurando a paixão por sua mulher no peito. Era insuportável a imagem dela no caixão envernizado. Seu vestido de pano surrado amarelo; sua sandália de couro gasta. Eram nesses trajes que ela o fez passar pelos melhores momentos na vida: o nascimento de Mônica, o fim da construção do casebre. Sempre em algo especial ela botava sua melhor roupa. E agora, ali, inerte, ela estava vestida para o pior momento de sua vida.
         Márcia havia nascido dois anos atrás. Mônica, com uma calça de moleton azul-escuro e uma camisa branca desenhada na frente  com o Mickey Mouse, arrastava sua irmã pela mão pelo clube afora, olhando os outros defuntos e encarando as pessoas conversando baixo e chorando. Passavam em frente ao banheiro feminino e colocavam o ouvido na porta, ouvindo o barulho da descarga.
         O tempo estava nublado. As nuvens, grandes e acizentadas, pairavam sobre Hulha Negra numa espécie de presságio, derramando chuva fina e gelada. O enterro de trinta e três idosos fez a cidade toda fechar o comércio, envolvendo o município num cortejo fúnebre.
         Seu Antônio caminhava silenciosamente por detrás de todo o movimento de pessoas, acompanhado das filhas. Olhava para o chão cascalhado, inerte, sem choro, sem expressão. Márcia, de mãos dadas com ele, o encarava tristonha; Mônica, de mãos dadas com uma prima de Porto Alegre, conversava sobre como era ruim aquela chuva logo naquele dia.
         Percebendo os olhos amargos de Márcia sobre si, seu Antônio, a olhou bem nos olhos e indagou, com voz fraca e distante:
- Sua mãe agora está com Deus, menina. Ela... – ele começou a soluçar, perdendo o controle – Ela...  
E chorou.
A família inteira parou  para o consolar. Ele estendeu o braço, com a palma da mão levantada, num sinal de que tudo estava bem. Ele precisava demonstrar toda sua afeição por sua amada esposa de uma maneira, e a melhor seria chorando. Se mostrar forte numa atitude de machismo que homem não chora nunca, seria a maior falta de respeito da vida inteira com sua Maria. “Sim, choro com toda minha alma. Você me fará muita falta, Maria. Nunca no mundo se fez mulher como você, mulher forte e dedicada. Mulher que amou seu marido e suas filhas. Aquela na qual não mediu esforços para criar decentemente todos da família, dando educação, trabalhando para por comida dentro de casa. Você sempre me ajudou em tudo dentro de casa e ainda vai me ajudar nas lembranças. Mulher forte como minha senhora nunca morre, mas descansa.”
         Um memorial foi colocado na praça principal com todos os nomes dos falecidos: “Uma pequena e singela homenagem a todos aqueles que nos serviram de lição de vida, amor e dedicação. Nunca nos esqueceremos de vocês”.
         Seu Antônio todos os meses ia ao cemitério colocar um girassol no túmulo de Maria. “O girassol sempre se vira para o onde o sol está. E ele agora se esconde por debaixo da terra.” Alguns familiares iam visitar os túmulos de seus parentes, mas com quatro ou cinco meses cessaram suas visitas. Antônio não: depositava lá um girassol por mês até seus últimos dias.
         Passados seis anos, a dor foi amenizada. Os filhos cresceram e com eles, alguma felicidade foi possível para aquele velho sofrido e desgastado pelo tempo. Márcia e Mônica adoravam o pai: gostavam de sua comida, de seu café e principalmente das histórias que contava nos fins de semana em frente sua casa.
         - Pai, faz café pra gente. Seu café é tão bom... O melhor café do mundo.
         - Vou ali pegar a minha meia no sapato e vou coar agora para vocês.
         Márcia e Mônica entreolhavam-se com cara de nojo.
         - Não, pai. Faz com um coador.
         - Porque vocês acham que ele tem um gosto bom?
         As irmãs, apesar de crianças, tinham se acostumado com as brincadeiras de mau gosto do pai. Certa vez, os três passeando pelos arredores de sua casa, aproveitaram da ausência de um vizinho fazendeiro e pularam na sua horta para subir no pé de pêssego.
         - Psiu, - repreendeu seu Antônio, - fiquem caladas. Eu vou trepar e pegar os maduros na ponta do pé. Vocês fiquem aqui embaixo pegando e colocando no saco.
         Elas se calaram imediatamente.
Escutava-se o barulho dos grilos e daquela chuva fininha que caía, deixando o pé de pêssego mais escorregadio.
         - Fiquem aí, vou jogá-los.
         Seu Antônio jogava as frutas longe do pé, fazendo as meninas correrem para recolher. Márcia, às escondidas, comeu um virada de costas para Mônica e para o pai, um expert em roubar pêssegos.
         - Deixa pra comer em casa. Não adianta comer escondido porque eu vejo tudo o que você faz.
         Márcia fez um “hum” tristonha. Acabou de comer o resto mas não se propôs a comer mais. Acima do medo, ela respeitava de todo o coração seu querido pai.
         - Lá vai mais. – seu Antônio gritou, jogando um bem longe, só para ver as pequenas correrem e molharem as pernas com as gotas de chuva nas gramas.
         Bem perto do fruto, as meninas ouviram um “TUM”, seco, às suas costas, como uma madeira reta estivesse caindo no chão.
         Elas se viraram rapidamente e viram seu Antônio estirado no chão, com uma mão sobre a barriga e a outra do lado do corpo, com as pernas retas e o rosto virado para o pé de pêssego, com os olhos fechados.
         - Pai, – gritou Mônica – o senhor está bem?
         Ele não respondeu, deixando Márcia preocupada.
         As duas correram até ele, jogando o saco de frutas no meio da horta, enxugando as gotas de chuva que lhe corriam sobre os olhos.
         - Papai, responde – disse Márcia – o senhor caiu? Responde.
         Silêncio.
         - Tô achando que ele morreu. – disse Márcia calmamente, sacudindo o corpo mole de seu Antônio, todo molhado.
         - Pai, responde – suplicou Mônica, aos gritos – não morre agora, pai. Pai...
         Márcia tentava ressuscitar seu Antônio às sacudidas. Mônica berrava ajoelhada aos pés do corpo, pensando como iria deixar o pai morto na horta do fazendeiro.
         Com apenas oito anos, Márcia o agarrara pelas axilas e foi o arrastando para a cerca, onde pularam para roubas as frutas. Suspirando com dificuldades, Márcia não recebera ajuda da Mônica, no qual só chorava desesperada.
         - Aí não. Tenho cócegas no sovaco – ria seu Antônio, dando o maior susto nas filhas, ainda deitado e de olhos bem fechados.
         - Pai, o senhor está vivo -  bateu palmas de alegria Mônica, abraçando-o, ele todo sujo de barro.
         Márcia o olhou bem sério e não hesitou:
         - Isso é coisa que se faça? Quase matou a gente de susto...
         Seu Antônio sorriu mostrando os dentes amarelados e beijou a testa da menina.
-         Perdi a força dos braços e caí.
As duas só entenderam as brincadeiras sérias do pai depois de adultas, quando um dos seus tios lhe contaram sua péssima mania em não confessar seus erros, sempre botando culpa em alguma coisa.
Ele gostava muito de contar histórias. Seu Antônio tinha um talento nato de inventar contos de última hora, principalmente aqueles de terror, assustando suas filhas e suas amigas. Ele vivia rodeado de crianças e adultos, principalmente aos sábados, junto a uma fogueira, em frente à sua casa. Os adultos achavam graça na capacidade do velho em inventar tantas narrativas em tão pouco tempo. Eles levavam seus filhos e aproveitavam para por as conversas com os outros amigos em dia, pais das outras crianças que levavam seus filhos para as historietas de seu Antônio. Sua casa aos fins de semana poderia ser considerada um teatro ao céu aberto, com uma fogueira ao lado, o velho em frente às crianças e os adultos no fundo, conversando entre si e de vez em quando parando, para ouvir aos trechos as histórias surreais.
- Quando eu tinha a idade de vocês – seu Antônio contava, com os olhos bem abertos, apontando o dedo indicador para todos os pequeninos sentados no chão – tinha aqui na cidade uma linha de trem abandonada. De vez em quando aparecia por lá alguns mendigos... Alguém aí sabe o que é mendigo? – perguntava ele, só para ter certeza da atenção da criançada.
- É uma pessoa muito pobre que não tem casa e passa muita fome – respondeu um menino desdentado bem no fundo, com a mão levantada para chamar a atenção do velho e de seus amigos.
- Muito bem, - completou seu Antônio – muito inteligente você. Aparecia por lá alguns mendigos para dormir na estação abandonada. Um deles uma vez me contou – parou para pensar no que falar, com a mão no queixo, pensativo - ... eu ainda era criança e tinha medo dos mendigos. Eles tinham uma barba grande e suja. Cheirava mal...
         Um “ARGHHHHH” em conjunto tomou conta da escuridão da casa. Márcia e Mônica riam com a mão na boca. Elas sempre eram as que ficavam na frente pra ouvir as histórias do pai.
- Eles me contavam que ouviam vozes pedindo ajuda na estação abandonada. Eles me contavam quando eu passava por essa estrada – e apontou o caminho de terra defronte sua casa – para ajudar meu pai no serviço da roça. Os mendigos fugiam, com medo.
- Que ajuda eles pediam? Queriam comida? – perguntou uma garota de cabelos castanhos e olhos salientes, bem no canto direito de seu Antônio.
         - Não, querida. Almas penadas não sentem fome.
- Como eles sabiam que eram almas penadas? – perguntou Márcia, sobressaltada.
O velho a encarou e explicou com uma tranqüilidade de quem não é pego de surpresa.
- Porque eles não viam de onde vinham as vozes. Elas vinham do céu.
Agora um “OHHHH” desafinado tomava conta do terreno. Os adultos se surpreenderam com a atenção das crianças e pararam de conversar entre si, prestando atenção à história.
- Um mendigo veio de muito longe e me falou da noite que passou lá. Estava ele bem andando por essas bandas, mas estava muito cansado e a noite tinha chegado. Como a estação estava abandonada, ele foi para lá e despejou suas trouxas num canto, dormindo logo em seguida. Mas pelo menos era isso o desejado...
Outra mão no meio das quinze crianças se levantou.
- Onde fica a linha de trem?
Seu Antônio, para não perder o raciocínio da história, respondeu rápido sem ao menos se dar ao trabalho de ver quem perguntava.
- Ela não existe mais. O governo tirou. – disse ele, ríspido. - O mendigo... Não conseguia dormir, ouvindo vozes, pedindo ajuda: “Me ajude, me ajude”. Foi desse jeito que ele saiu correndo de lá, sem ao menos conseguir cochilar. Todos os moradores vizinhos da antiga estação falavam das pessoas saindo correndo de lá.
Mônica, curiosa mas perspicaz com as histórias do pai, questionou:
- Os vizinhos também ouviam as vozes?
- Nãoooo!!!!! – respondeu ele sonoramente – Somente quem ia à estação para dormir. A alma era dona do lugar e afugentava todos dali.
- O senhor já dormiu lá? – uma menina, a mais nova de todas, com uns sete anos, perguntou toda interessada pela história. Sempre gostava das histórias de fantasmas do pai e as do seu Antônio para ela simplesmente eram as melhores. Seu pai se esforçava para fazer com igual criatividade as histórias do velho quando não podia levá-la, mas todo o esforço era vão.
- Nunca. Sempre tive medo das histórias dos mendigos. Sempre respeitei os mais velhos e eles falavam pra nunca ir lá. Só um menino desobedeceu o pai uma vez e se deu mal. – seu Antônio cochichou, como se não quisesse que sua voz fosse ouvida pelos adultos – o menino ficou doido. Foi parar no hospital para doidos.
Todas as crianças colocaram a mão na boca, assustadas.
- Não desobedeçam seus pais, porque vocês podem acabar como esse menino. Internados e loucos, sozinhos no hospital.
A garota mais nova começou a chorar. Um menino do outro lado começara a inspirar ofegantemente, querendo também cair em prantos.
Seu Antônio, descontrolado e com a habilidade da conversa, tentou tomar o controle da situação
- Não, criançada. Ninguém aqui vai ficar doido e sozinho no hospital. Eu conheço todos vocês e os seus pais sabem o quanto vocês são obedientes.
Ele tentava contornar o susto dado nas crianças. Umas se acalmaram, mas a mais jovem de todas não estancou o choro. Seu pai veio correndo, lançou um olhar rápido com as sobrancelhas franzidas para seu Antônio, colocou-a no colo e saiu apressado.
O velho sabia muito bem o que significava aquele olhar. Queria terminar rápido a história.
- Bem... – continuou ele, tendo muito custo para voltar a concentração. Tinha ido longe demais com o recado para as crianças – o menino nunca obedeceu aos seus pais. Não escovava os dentes, dormia tarde, chupava manga e depois tomava leite...
Os pais, que antes queriam tirar seus filhos dali também pois seu Antônio as assustara muito, perceberam o porque do susto. Ele, na verdade, estava educando de maneira indireta a infância sofrida daquela época. Todos muito pobres não tinham uma educação adequada. Moravam longe das escolas e a estrada era muito ruim, impossibilitando em dias de muita chuva o transporte escolar chegar por aquelas bandas. A educação não era passada através de xingos ou de palmadas, e sim através de histórias.
- Um dia, ele quis lá enfrentar o fantasma. O pai dele avisou: não vai porque é perigoso! Ele respondeu: fantasma não existe. É tudo mentira.
Outro garoto levantou o braço. Os pais agora estavam atentos a cada palavra de seu Antônio. Se ele falasse qualquer outra coisa assustadora, eles tirariam todas as crianças dali. E o velho percebia isso. Com muito cuidado, escolhia as palavras para dizer. Não queria ser afastado dos garotos. Estar rodeado deles era sua alegria, isso era o satisfazia plenamente. Nunca se sentia daquele jeito, tão querido e tão solicitado durante muito tempo após a morte de sua amada esposa. Ela o completava em tudo. Agora eram suas filhas e todas as crianças das redondezas que preenchia o buraco em seu coração.
- Quem te contou isso?
Não precisou pensar muito para responder.
- O meu tio. Esse menino era neto dele, pequenino assim como vocês. Depois disso ele nunca mais desobedeceu aos seus pais.
- O que aconteceu? – agora era a vez de Márcia, toda curiosa, perguntar.
- O menino foi lá à noite, sem avisar seus pais. Era quase meia-noite e sua casa estava silenciosa. Ele saiu pé por pé – suas palavras ficavam mais vagarosas – e foi até na estação. Entrou em toda aquela escuridão e se sentou lá, esperando alguma coisa acontecer.
- Ele ouviu a alma? – uma criança perguntou. Seu Antônio estava sereno, pensativo, como se ele mesmo estivesse na estação, para poder transmitir toda a adrenalina para a garotada.
- Ele dormiu um pouco. Acordou muito assustado com a voz chamando: “Me ajude, me ajude”. O menino quase correu de tanto susto, mas ficou, tomou coragem e conversou com a alma...
Os olhos da criançada estavam vidrados e brilhantes no semblante do velho. Os adultos também se interessaram pela história, curiosos e admirados com o poder de sedução do seu Antônio, aquele homem respeitável e amigo. Estavam boquiabertos com sua imaginação e capacidade de narrativa. “Esse velho realmente é inteligente, do jeito que as crianças sempre falam. É cada história inventada... Onde já se viu? Aqui nunca teve linha de trem...”
Apesar de serem mentiras, desde as histórias como os lugares, eles, como os seus filhos, se convenciam delas pela convicção e rigidez do seu Antônio ao narrar tudo de uma maneira simples e pontual. As histórias não passavam de meia a uma hora de duração. Quando os pais autorizavam e queriam seus filhos aos cuidados do velho, as histórias duravam mais tempo. Tudo era questão de disponibilidade tanto dele quanto dos pais. Com mais ou menos minutos, histórias sempre saíam da cabeça de seu Antônio, tanto encantando quanto assustando as crianças.
- Ele falou para a alma, olhando para o teto da estação: “Te ajudo. O que você quer?” Ela respondeu: “quero sua ajuda”. O menino falou novamente: “que ajuda?” A criança começou ouvir umas coisas caindo no chão bem ao seu lado, um som parecido com tijolos, bem pesados. Ele não via porque estava muito escuro. Abriu a porta velha da estação pra deixar a luz da lua entrar e gritou muito alto, acordando todos os moradores dali.
Ouviu-se um grilo cantando. Seu Antônio fez um silêncio triunfante com a vitória sobre todos dali. Eles eram seus espectadores atenciosos e integrantes da história, aguardando ansiosos pela continuação.
E, pela surpresa de todos, tanto do velho quanto das crianças, um adulto levantou o braço.
- O que ele viu? – perguntou uma mulher de meia idade, usando um vestido xadrez verde e preto, de cabelos loiros com algumas mechas brancas. Percebia-se o seu envolvimento com a história pelo tom da pergunta.
Seu Antônio a olhou sorridente e se virou para as crianças, gesticulando com as mãos para baixo, com os dedos esticados.
- Viu pedaços de gente no chão. Viu uma perna, uma mão e uma cabeça rindo para ele. Saiu correndo e gritando, pedindo socorro. Um dos vizinhos perguntou o que tinha acontecido e ele respondeu que tinha visto os pedaços do fantasma no chão. Todo mundo correu lá pra ver mas ninguém viu nada.
Um dos adultos lhe acenou, apontando o indicador para o pulso. Estava na hora de levar as crianças para dormir.
- ... depois ele ficou com muito medo e jurou nunca mais desobedecer aos pais. Depois de muito tempo descobriram que a alma era de um mendigo morador da estação. Ele bebia muito e dormiu na linha do trem, sendo atropelado e o corpo todo partido em pedaços. Seu corpo estava soterrado e queria ser descoberto pra poder ir para o céu. Aqui acaba a história e semana que vem tem mais. Tchauzinho e um beijo para todos vocês.
Só dizer adeus não bastava. As crianças tinham um carinho enorme pelo seu Antônio. Fizeram uma fila indiana, desorganizada, para poder beija-lo e abraça-lo. Era bom contar histórias só para ter aquele momento de afeição, com tantas crianças com sentimentos sinceros. Era essa sinceridade infantil que lhe dava vontade de viver.
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         Seu Antônio, graças à pequena prefeitura municipal, conseguiu escapar dos dois enfartes nos dois anos consecutivos. Fora socorrido às pressas e sofrido duas cirurgias nas veias coronárias. Se recuperou bem delas. Tanto na primeira quanto na segunda operação, ele não se fixava na doença e conseguiu se sair bem, saindo bem preparado psicologicamente, não atraindo para si daquelas doenças que só a mente doente pode trazer.
Mas a falta de cuidados dele instigou à terceira  cirurgia. E dessa vez, não fora uma simples operação. Três veias entupidas e quinze dias no CTI lhe custaram para retornar à Hulha Negra e seguir uma vida com regras. Ele não se sentiu muito à vontade. “Estou velho, na hora mesmo de partir. Não vai ser agora que vou deixar de aproveitar a vida”.
         Ele nunca teve maus hábitos alimentares. Aliás, suas condições financeiras nem lhe permitiam comprar muitos alimentos inadequados para quem opera o coração três vezes. Seu Antônio não mudou sua rotina devido às caminhadas longas feitas durante todos os dias e o esforço feito nos trabalhos cotidianos. O médico recomendara repouso absoluto, mas ele balançara negativamente a cabeça, mostrando para o médico e para os familiares sua total indiferença para com a morte.
Ficou feliz em ver o casamento das filhas. Elas se mudaram e ele ficou só, perambulando como uma alma penada na casa, ouvindo rádio de vez em quando e admirando o céu nos fins de tarde.
Aos fins de semana encontrava-se com as filhas e genros na matriz para as missas matinais dos domingos. Essa tradição perdurou pouco até o pastor local conseguir convencer Márcia das “contradições” entre a Igreja Católica e a Bíblia, tornando-a mais uma de suas ovelhas desgarradas. Seu Antônio não entendia aquilo. A missa era tão sagrada que qualquer diferença a partir de sua visão era uma afronta a Deus. Não disfarçava o desgosto ao ver sua menina andar com a Bíblia debaixo do braço, apesar de nunca lhe falar nada. Márcia sabia que seu pai carregara para o túmulo esse desgosto, mas acreditava que do outro lado Deus o convenceria e ele a perdoaria.
Todas as tristezas da solitude se desvaneceu com o nascimento dos netos. Seu Antônio adorava ser rodeado pelos pirralhos pendurados em seu pescoço enrugado e cheio de dores, agarrando-lhe pelas pernas duras. A bajulação dos netos fazia com que as dores sumissem, fazendo-o sorrir, xingar, contar casos, cozinhar e até brincar de pipas.
O nascimento de Natan não foi um caso diferente de todos os outros. Ele era querido e adorado pelo avô. Ele também era um dos que agarravam em suas pernas e em seu pescoço. O amor do velho era incondicional e não media diferença entre todos eles. Viver na solidão e na tristeza fizera-o um homem incapaz de selecionar o neto mais afetuoso e brincalhão. Já estava cansado e preferia morrer como as crianças.
         Seu Antônio percebia a fragilidade de Natan perante os outros netos. Ficava doente com mais freqüência e era mais distraído, não obstante o mais apegado e carinhoso dentre todos os outros.
         - Márcia – dizia ele – esse menino precisa de cuidados, filha. Ele vive gripado. Olha só os espirros dele.
         Em tempos o menino tossia muito. Eram precisos cuidados hospitalares a miúdo. Os chás da casa de seu Antônio já não faziam efeito e ele se preocupava muito, esquecendo-se dos outros netos que precisavam também de sua atenção. Isso não era bem visto por Mônica, que às vezes liberava em ímpetos escandalosos suas crises de ciúme:
         - Se fossem os meus filhos o senhor nem ligava!!!
         Seu Antônio a olhava triste e indagava:
         - Não é verdade, querida. Seus filhos foram mais abençoados que Natan, só isso. Ele merece mais atenção porque é mais doente. Isso não é hora para essas crises infantis.
         Mônica, no fundo, entendia. Tinha ciúmes, mas compreendia tudo por seu amor à irmã.
Tantos os sentimentos quanto as manifestações de amor e ódio dela caminhavam juntos e tanto seu Antônio quanto Márcia não se importavam com os devaneios de Mônica, sempre levando em consideração o sangue da família que lhe corria nas veias. Era preciso paciência com ela.
         O velho morrera na cama, aos oitenta anos. Dera o quarto infarto e morrera em silêncio, talvez sem dores. Não foi possível ter certeza disso.
         Natan o descobriu imóvel na cama e tentou chamá-lo. Sacudiu-o umas três vezes mas sem resposta. Chamou a mãe, dizendo que o vô não queria acordar.
         Pensando ser umas daquelas brincadeiras antigas do seu pai, ela falou na porta do quarto:
         - Pai, todos os seus netos estão aqui, esperando. Tá cansado?
         Ele não se mexera, assim como não respondeu.
         - Vamos, pai. O senhor não vai me enganar.
         Foi até ele e o sacudiu. Seu braço moveu-se como uma gelatina.
         - Pai?
         Ela o virou para cima. Natan não deixou de perceber o aspecto cadavérico do seu avô: ela estava lívido, com a boca aberta e lábios roxos.
         - MÔNICA – gritou Márcia – venha cá. Eu acho que nosso pai não está bem.
         Natan estava chorando muito, no canto do quarto. Ele encarava o vô. Ele estava com uma aparência horrível, bem parecida com aquelas múmia dos filmes que assistia. Seu vô nunca mais contaria histórias e sorriria para ele.