- Daniel, o teu primo chegou. Vá brincar com ele na horta! Leva os brinquedos que ganhou no Natal e mostra pra ele!
Mônica era um pouco mais velha que Márcia. Portava seus quarenta anos muito bem levados, bem cuidados e com muita saúde. As duas pareciam-se bastante, tratadas como gêmeas na pequena cidade tamanha a semelhança entre elas.
- Mônica, traz pra mim amanhã duas dúzias de ovos. To precisando assar mistura.
- Não sou eu. É a minha irmã. Liga pra ela.
- Nossa, me desculpe. Vocês se parecem tanto... Eu acabei me confundindo...
- Não tem problema não. O pessoal confunde mesmo.
Quando a Mônica ia na cidade, passava pelos mesmos transtornos. Às vezes, ela com pressa, parava para atender aos colegas da Márcia pedindo por orações.
- Não é pra minha irmã que você quer pedir não?
- Mas é que te vejo na igreja nas quartas...
- Qual igreja? – responde Mônica ressabiada.
- Na Assembléia, nas quartas.
- Ah, não! Eu não vou na Assembléia de Deus não. Quem vai é minha irmã. Todos nos confundem. Somos muito parecidas! Eu sou católica.
- Ahn...
A religião era uma das diferenças entre as duas. Diferenças que só sabia quem era convivente com ambas. Mônica era paciente, mas também mais estourada nos momentos de extrema provocação. Márcia mais gananciosa, invejosa, mas pelo outro lado compreendia mais o sentimento alheio. Enfim, qualidades e defeitos presentes em todos os seres humanos. Com elas não poderia ser diferente.
A casa de Mônica era realmente antiga. Comprada pelo marido Anselmo, datava do final do século XIX. Optou somente por reformas internas apesar do Instituto do Patrimônio e Artístico do Rio Grande do Sul não tombar o imóvel. Tanto ele como Márcia era um admirador profundo de objetos e imóveis históricos.
A casa original apresentava chão de madeira antiga desconhecida, as paredes feitas de barro. Anselmo não desejava um desabamento inesperado na cabeça de sua família. A estrutura interna foi toda modernizada, incluindo fortes colunas de cimento para reforçar as paredes externas, pois essas eram as únicas que ele queria preservar, incluindo uma pintura reforçada como a original. As paredes da parte de dentro foram desabadas, o chão todo retirado e o telhado removido. Derrubaram cimento nos enormes buracos do piso da casa, bateram laje, e, para causar inveja naqueles admiradores de patrimônios históricos, o telhado original foi posto de volta.
- Isso vai virar ninho de pomba. – reclamou Mônica.
- Ainda bem que é de pomba, não é de cobra. – riu-se Anselmo da brincadeira de duplo sentido.
Viveriam numa casa de um século passado em um século posterior. Esse era o desejo de adolescente de Anselmo. Para Mônica as paredes externas não faziam tanta diferença. Alertou Anselmo da reforma interna, tanto para a segurança da família quanto do papel estético. Achava horrorosos os objetos e forma da casa antiga. Não queria viver num museu no meio do mato. Gostava de viver na zona rural, mas isso bastava para seu ego. Que os museus fossem dádiva de cidades grandes.
Anselmo ainda não havia chegado em casa. Fora na cidade fazer compras, ir no açougue e levara leite das cinco vacas que possuía no terreno ao lado da casa para vender.
- Mônica, tem muito tempo que vocês compraram esse terreno?
- Tem quatro meses. Anselmo também comprou as vacas e essas galinhas que estão no fundo da horta. Nunca vi gostar de bicho que nem ele. Agora a Dirlene quer um cachorro e ele falou que vai dar ela no ano que vem.
O pasto, à esquerda da casa, era separado com placas duplas de cimento horizontalmente encaixadas por colunas do mesmo material. Não era tão alto, mas impedia a curiosidade das crianças e suas peraltices. Esse muro cercava a casa até ao fundo da horta, revelando um serviço bem feito e muito caprichoso do Anselmo.
A casa era grande, assim como o terreno. Tanto que a horta além das plantações de couve e de ameixa dava espaço para um galinheiro com cerca de trinta galinhas e cinco galos e mais um espaço cimentado entre a porta que dava para ela de quatro metros. Anselmo cimentara aquela parte com o intuito de criar uma área de lazer para as crianças na época do calor. Tinha uma piscina de plástico desmontada ao lado, mas com certeza em pouco tempo as crianças todas estariam nadando para o entretenimento de todos naquela casa.
As duas irmãs sempre se deram bem e preocupavam-se uma com a outra. Além das visitas de Márcia de costume, ao saber de qualquer dificuldade que ambas tinham, elas se ajudavam, sejam em quaisquer circunstâncias.
- Como o Natan está passando agora?
- Ele melhorou bastante – Márcia hesitou por um momento – Mas parece que ontem ele deu uma recaída.
- Por quê? Ele passou mal?
- Não. Ele ficou muito esquisito.
- Como assim? Esquisito como?
- Ele me falou de um jeito que nunca tinha falado antes. Isso sem falar do jeito esquisito quando acordou. Foi uma coisa assim de momento, mas eu não o reconheci. Foi muito estranho.
As duas caminharam até a horta e entraram para a cozinha. Sentaram-se à mesa de jantar, ao lado da outra. Mônica apertou a mão de sua irmã.
- Confia em Deus, minha querida. Ele sabe o que faz. Natan deve ter dado algo só de momento. O pior já passou. Talvez o que ele tá dando agora é somente um reflexo da fase ruim da doença dele. Ele deve estar assustado, assim como você. O que ele fez pra te deixar dessa maneira?
O aperto das mãos ficou ainda mais firme.
Márcia trouxe para junto de seu busto as mãos de Mônica e chorou. “Ela realmente está assustada”, pensou a irmã.
- Calma querida. Porque tá desse jeito? Foi só uma brincadeira dele.
- Mesmo quando ele tá brincando, por pior que seja o disfarce, eu o conheço muito bem. Ele sempre foi meu Natan. Mas por alguns segundos ele deixou de ser ele. Tenho certeza disso.
Mônica queria ficar desconsolada, mas não podia. Teria que tirar forças do fundo de sua alma para apoiar sua irmã caçula. A tristeza também a estava abatendo, mas até ali ela estava conseguindo resistir duramente. Mas só até ali.
Dirlene era a filha do meio de Mônica. Tinha nove anos. Tinha mais dois irmãos: Daniel, o mais velho, de dez anos e Dirceu, de oito. Os filhos com diferença de um ano somente era programado pelo casal. Queriam ter três filhos e preferiram tê-los em seguida para depois parar. Uma família grande e estruturada, mas, por precaução, Mônica operara e fizera ligadura nas trompas para evitar acidentes posteriores.
Todos os primos brincavam na calçada improvisada feita por Anselmo na porta da cozinha para a horta. Brincavam e gritavam, corriam, deitavam no cimento e rolavam. Um copiava o outro nas brincadeiras.
Natan entrou na cozinha enquanto os primos estavam distraídos olhando o tablet novo de Dirlene. Pararam com as brincadeiras para admirar e mexer nos presentes ganhos no Natal de 2012. Márcia e Mônica estavam tensas e nervosas e nem se deram pela presença do menino entrando sorrateiramente pela porta.
Abriu uma gaveta de um pequeno armarinho de madeira maciça próxima à entrada e escolheu a maior faca dentre cinco que estavam misturadas entre si. Tinha o cabo de plástico preto e media em torno de vinte centímetros. Olhou para sua mãe e percebeu sua distração contínua. Mônica a aconselhava e alisava seus cabelos, num ato de perseverança e num aprofundamento de diálogo, continuando a não perceber a presença de Natan na cozinha.
Assim como ele entrou, saiu sem deixar vestígios. Escondeu a faca nas costas, firmando-a com as duas mãos para se ter certeza de que ela não cairia. Queria sua mãe e sua tia na horta depois da derradeira brincadeira planejada, não desejando a interferência dos adultos no ato sublime.
- Vocês querem brincar de uma brincadeira nova?
Os filhos de Mônica se entreolharam e concordaram com a cabeça, descartando suas atenções ao tablet novo de Dirlene.
Natan estava muito excitado. Queria pregar uma peça nos primos e se deleitar em suas reações com a brincadeira que tinha em mente. Mostrou a faca com a ponta para cima com somente uma das mãos, fazendo reflexo forte do sol nos olhos pequeninos de Dirceu.
- Onde você pegou essa faca, Natan? – perguntou assustado Daniel.
- Na cozinha.
- Se minha mãe te pegar, ela te mata. Isso não é coisa pra brincar e, aliás, se quisesse brincar de fazer reflexo na nossa cara, pegaria uma tampa de lata. Dá muito mais reflexo porque ela é bem maior que essa faca e menos perigosa. Devolve isso agora.
- A brincadeira não é essa, retardado. Venham comigo.
A voz de Natan soava com autoridade. Os seus primos mais novos estremeceram com o tom ameaçador dele, mas Daniel, sendo mais velho e mais malicioso, não deixou passar por menos.
- Retardado é você. Me dá isso agora.
No trajeto até ao fundo da horta, em caminho para o galinheiro, Natan vira a cabeça para trás e o assusta com um olhar sombrio e lento. Todos pararam de caminhar e perceberam o clima tenso entre os dois. Em cinco passos, estando Natan no princípio da fila e Daniel por último, ele se defronta cara a cara com seu primo e lhe agarra o pescoço com a mão direita, dificultando a passagem de ar pela garganta.
Estrebuchando e com a língua para fora, Natan aponta a faca enorme para a área genital de Daniel e lhe sussurra nos ouvidos:
- Se quiser teimar comigo e me desafiar, tudo bem. Mas ficará sem isso – cutucou a ponta da faca no pequeno volume frontal da bermuda verde do primo – sem saber pra que serve.
Com uma força de adulto, Natan derruba Daniel no chão. Ele esfrega a garganta, meio que tossindo e gemendo de dor, com os olhos esbugalhados encarando “aquilo que parecia ser seu primo”.
Com o olhar mortal e sádico lhe encarando, Daniel percebia algo de muito errado com aquele menino sempre meigo, gentil, alegre e educado. Estava muito assustado e não sabia o que pensar. “O que aconteceu comigo?” “Porque ele ta fazendo isso?” “O que ele quer fazer, do que ele quer brincar?” “Ele vai matar a gente?”
De um pulo, saiu do chão e correu para a cozinha. Nem chorou, mas estava ofegante e nervoso. As marcas dos dedos de Natan envergavam seu pescoço num roxo escuro, sinal de força de um adulto de uns vinte e cinco anos.
Os outros dois acompanharam Natan até o galinheiro, com medo de lhes acontecer o mesmo de Daniel. Estavam apreensivos, nervosos e Dirceu começou a chorar em silêncio.
- Não precisa chorar. Agora vou mostrar uma brincadeira nova e daqui a pouco você vai rir novamente. Seu irmão porque é um chato e não sabe brincar.
Dirlene esboçava um comportamento diverso dos irmãos. Não importava com o gênio de Daniel, mas também não tinha medo do primo. Queria chegar até ao final porque sabia instintivamente que alguma coisa muito diferente do seu cotidiano viria por ali.
O galinheiro era grande e sua porta, tanto como o resto dele, era feito de tela de arame, com minúsculos espaços abertos. Era alto devido à prevenção de ataques de animais comuns naquela área da cidade, como gambás. Natan entrou dando um solavanco forte na porta, fazendo todo o galinheiro estremecer. Dirlene deu uma gargalhada, tampando a boca com as mãos logo em seguida, tomada pela vergonha.
- Rir não é vergonha. Porque tampou a boca? – retrucou Natan, jogando a faca no chão, olhando para os cantos, tomando posição e correndo atrás das galinhas, querendo pegar qualquer uma para por seu plano em ação.
Ela não respondeu. Ficou parada em pé olhando o primo correr. Dirceu estava sentado junto à porta, olhando fixo para a faca brilhando no chão. Não conseguia chorar mais. Nem esboçava mais nenhum comportamento diante do primo.
- Pronto. Peguei uma. E por sorte, ela é preta.
Natan conseguira encurralar uma galinha no canto esquerdo do fundo do galinheiro. Ela cacarejou um pouco nos braços dele, se calando bruscamente sem motivo aparente.
- Venham aqui vocês dois. Vamos sentar aqui.
Natan pegou a faca jogada e sentou-se juntamente com os primos na sombra onde as galinhas dormiam. Olhou bem para ela, recebendo a atenção em troca. Silêncio total por ali. Todas as galinhas ficaram em silêncio, encarando o garoto.
Dirlene e Dirceu olharam em volta, estupefatos. Ela, ansiosa. Ele, com medo e querendo a mãe.
- Reparem bem como a galinha nem mexe a cabeça. Eu vou mexer o corpo dela pra cima e pra baixo e a cabeça dela vai ficar no mesmo lugar.
Os irmãos não entenderam a brincadeira do primo. Se ele queria mostrar aquilo, porque a faca? Dirlene ficara desapontada, pois aguardava uma coisa bem pior.
A galinha estava sossegada nas mãos de Natan. Seu papo cacarejava enquanto ele a balançava de cima para baixo, ficando com a cabeça sempre no mesmo lugar. Dirlene estava encantada com a mágica de Natan.
- Como você faz isso? – pergunta ela – Quero fazer também.
- Vem cá. Segura ela assim, desse jeito – pôs as mãos dela segurando as asas junto ao corpo - e balança ela de cima pra baixo, devagarinho. Depois a gente deixa o Dirceu segurar.
O primo de Natan balançou a cabeça negativamente. Não queria saber daquela brincadeira. Só queria ir pra casa, mas não tinha coragem suficiente de desafiar Natan.
- Também sou mágica, Dirceu. Olha só o que eu to fazendo. Vem cá você também.
Ele olhou triste para a irmã e choramingou:
-Quero ir embora.
- Vem cá segurar a galinha também.
- Não. Quero ir embora. – disse ele firme.
Natan o encarou friamente.
Dirceu baixou a cabeça, prestando atenção num talo de couve jogado para as galinhas no meio de suas pernas. Não queria olhar para o primo mais.
- Agora chegou a parte mais interessante da brincadeira. Vejam só o que acontece com ela.
Dirlene ajeitou seus cabelos loiros compridos por trás da nuca, voltando a se sentar do lado do irmão. Esse não levantava mais a cabeça, e tremia o corpo todo. Voltou a chorar.
- Chorão! Para com isso! – empurrou Dirlene, derrubando-o no chão empoeirado e sujo com fezes de galinha. Dirceu se levantou correndo, batendo a roupa, com mais força na bunda, lugar onde mais estava prejudicado pelo chão do galinheiro. Olhou para o Natan e ficou imóvel, com os olhos parados para o que ele fazia.
Isso chamou a atenção da prima. Ela olhou para trás e viu o primo preparando a próxima brincadeira: firmando a galinha no chão com a mão esquerda, com o pescoço bem esticado, e na mão direita a faca bem firme em posição de guilhotina, mirava o pescoço do animal.
- Agora vamos brincar de Rei Arthur. A galinha é a traidora do reino e merece ser punida. Ela tem que ser morta! E você, bruxa – apontou a faca para Dirlene - se encarregará de levar sua alma para o inferno. Eu lhe farei rainha depois da execução!
Ela estufou o peito e cruzou os braços por sobre a barriga, fechando os olhos. Estava pronta e já invocara Belzebu para a condenação da alma daquela pobre galinha.
Dirceu começou a berrar escandalosamente. Dirlene foi até ele, segurando-o e lhe tampando a boca, ordenou a Natan:
- Faça a justiça. Condene o traidor! O mago está nas minhas garras e não poderá fazer nada.
Natan apertou os beiços como quem precisava de muita força e desceu a faca com precisão no pescoço da galinha.
Foi um estardalhaço em todo o galinheiro. Aquele silêncio de outrora se esvanecera. As galinhas batiam as asas com força, carcarejavam alto enquanto Natan levantava triunfante a galinha se debatendo sem a cabeça, com o braço e o peito todo sujo de sangue.
Dirceu se debatia pra se livrar dos braços da irmã. Insistiu tanto que a acertou no estômago, fazendo-a arquejar, a ponto de se ajoelhar no chão sujo. Ele saiu correndo galinheiro afora, gritando: “Mamãe, mamãe”.
- Venha para mim, minha rainha. Venha se sentar ao meu lado.
Dirlene, apavorada com o escândalo do irmão, se voltou para Natan, vendo que ele já largara a galinha morta no chão.
Indubitavelmente mais calma, ela era a rainha agora. Rainha do galinheiro junto ao rei Natan. Os dois se sentaram no centro e ele se apoiou na faca, fazendo dela seu cetro de ouro.
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