Discussão Dorense

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sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

O EXORCISMO DE NATAN - capitulo 3

           - Foi sim. Foi desse jeito que ele fez.
Daniel bufava de raiva. Sentia um misto de humilhação e ódio de seu primo que pelo menos parecia ser mais fraco e mais inocente do que ele.
- Eu sei pra que isso serve. É pra fazer xixi.
Mônica passava a mão na cabeça do filho, acalentando-o, sentindo o desprezo dele por Natan e procurando nos olhos lacrimosos de Márcia uma explicação plausível para aquilo tudo.
- Mamãe, mamãe – entrou desesperado e chorando Dirceu, tropeçando na porta da cozinha e caindo de joelhos no piso verde frio da cozinha. – Natan matou uma galinha lá fora. Vai lá pra senhora ver! Ele é muito mau com os bichos!
Márcia de um pulo correu para o fundo da horta. As imagens ao seu lado corriam-lhe pela mente como se fosse um pesadelo proveniente de um dia de muito estresse e quando ele estaria na pior fase, ela acordaria. Márcia queria logo acordar. Mas, apesar de querer fugir daquela realidade, era nela que estava e estava sucumbindo aos problemas seqüenciais de seu filho Natan.
- Natan, o que pensa que ta fazendo? Sai desse galinheiro agora mesmo! – gritou ela, ao longe, vendo-o bem sentado, brincando de jogo da velha com a Dirlene na poeira do chão do galinheiro.
Ela ainda não acreditava naquilo tudo. Dirceu não se enganara ou confundira, vendo ele fazer outra coisa e dizendo que ela havia matado uma galinha? Será se ele ameaçara mesmo Daniel? Não seria uma briga de crianças normal e eles acusavam Natan injustamente de coisas inadequadas para uma criança?
Não. Tudo se ajustava no que ela havia ouvido de Daniel e Dirceu. Bem próxima do galinheiro e do lado de fora, viu a camisa dele suja de sangue bem ao peito.
-Sai daí agora! Não me ouviu?
Márcia perdia o controle. Nem sabia mais o que sentia. Olhou ao fundo, percebendo a galinha morta sem a cabeça e a faca suja misturada com poeira e fezes de galinha.
- O que você fez? Perdeu a cabeça? Não to te entendendo! – ela segurava o arame firmemente com as duas mãos, sacudindo-o, querendo chamar a atenção dele, sem coragem de entrar e lhe encarar nos olhos.
Tinha uma coisa de muito errado com ele.
Natan, sempre amigo dos bichos, sempre inimigo dos maus-tratos aos animais agora matara uma galinha. UMA GALINHA. E ainda arrancando-lhe a cabeça com uma faca de cozinha.
Márcia parou de chamar a atenção dele. Ficou quieta e se sentou ali mesmo, no chão empoeirado e sujo. Aquele garoto era o mesmo que a tinha xingado na cama. Aquele jeito frio, perdido, nem sequer dera atenção aos seus gritos. Natan atendia a qualquer fala da mãe. Seu filho havia sumido e ela não sabia onde e como procurar. O corpo dele estava presente, mas sua alma se escondera nos mais sórdidos cantos da Terra.
Mônica correu até ao galinheiro. Entrou e levantou Dirlene pelo braço na força bruta.
- Que pensa que ta fazendo? Não viu o que ele fez? Ele mata uma galinha e você fica aí brincando com ele? – ela estava com os olhos arregalados para Dirlene, assustando a menina.
- Mãe, a gente tava punindo a traidora do rei! Ela tinha que morrer!
- Não sei do que estavam brincando, mas matar uma galinha não é uma coisa boa não. Porque seus irmãos voltaram pra me contar e você ficou aqui? Porque não voltou com eles para me contar?
 - Porque eu queria saber como ia acabar a brincadeira. Só isso.
- Só isso? Ele assusta seu irmão e você nem ta aí? Você ta muito encrencada, menina.
Marcia era incapaz de redargüir os argumentos de sua irmã. Estava sem forças e sem vontade nenhuma de falar, de se proteger e de proteger seu filho. Ela estava derrubada pelo destino triste que começara a lhe mostrar seu caminho.
Natan não deu a mínima para sua tia. Continuou com o jogo da velha sozinho, riscando com o dedo o X, fechando o jogo com Velha.
- Márcia, vai deixar seu filho aqui, jogado no chão? Ele não precisa de pelo menos uma bronca? – voltou-se a irmã para Márcia, arrasada ao chão fora do galinheiro.
- Levanta daí e vem pra cá. O que é que tá acontecendo contigo?
Mônica estava transtornada com a irmã. A atitude de Natan começava a fazer sentido, pelo menos para ela.
- Não é à toa que ele é assim. Garoto mimado, não tá acostumado a ser xingado quando faz coisas erradas. Você não está criando seu filho direito, Márcia.
Com os olhos baixos, ela se sentiu humilhada pela irmã. Sem se dar conta, ela conseguiu levantar-se do chão e foi até lá dentro, puxando a mão do menino com leveza.
- Vamos embora, Natan! Quero conversar contigo em casa.
Dirlene estava ali, em pé ao lado da mãe, encarando o rosto pálido da tia. Não estava triste e muito menos se preocupava com Natan. Afinal, fora ele quem matara a galinha.
- Não, quero que converse com ele aqui e faça ele me pedir desculpa. – Mônica estava fora de si, pois sempre fora rígida com seus filhos e via na sua irmã espécie um espelho seu.
- Mamãe, solta meu braço! Tá doendo, - choramingava Dirlene, tamanha a força que Mônica a apertava. Ela se debatia, mas sua mãe não a escutava.
- Quero que ele peça desculpas pra minha filha e para os meus filhos – exigiu ela. – Eles estão assustados, muito assustados. Não sei o que está acontecendo com vocês dois, mas exijo uma desculpa dele.
 Márcia não entendia a irmã. Há dez minutos ela a consolava como uma mãe e agora a acusava como a pior das inimigas. Sim, o mundo estava girando e se continuasse tudo naquele ritmo desenfreado, ela não acabaria muito bem. Sua vida estava querendo a começar a virar um inferno. “Deus não vai permitir”, alimentava seu sonho. Márcia não estava processando racionalmente todos os problemas: a doença do filho e aparentemente, uma doença nova acalentada pela outra antiga. A superação da outra foi custosa tanto para a mãe quanto para o filho e agora, esse transtorno que ela ainda não entendia.
- Natan, olha pra mim – Márcia disse quase implorando para seu filho – Pede desculpas para sua prima. Escute sua tia! Não vê que ela tá muito brava contigo?
O tom de seu pedido era suplicante. E súplica maior era fazer Natan levantar seu rosto do chão para pelo menos olhá-la nos olhos. “Esse não é o meu sobrinho, Márcia está coberta de razão”, refletiu Mônica. 
Pegando levemente pelo braço do filho, Márcia o levantava do chão com delicadeza.
- O que aconteceu contigo? Você sempre gostou de bichos, porque matou aquela galinha, tão inocente que não te fez nada?
Silêncio nos lábios de Natan. Sua mão apelava para o sentimentalismo com o intuito de o fazer falar e se justificar perante tanta pressão sobre sua mente de criança.
- Deixa pra lá, Márcia, não precisa disso – Mônica retrucou com pena dos dois, afinal seu acesso de raiva não corroborava em nada para uma ajuda de família, no qual todo apoio era fundamental na cura de quaisquer males. – Ele não precisa pedir desculpa, não é Dirlene? O susto passou. As crianças vão entender completamente. Eu me incubo de explicar com cuidado que Natan não está bem.
Desesperada, Márcia sabia que Natan realmente não estava bom, apesar de ter sentido uma pontada no peito pela maneira como sua irmã falara.
- Vamos, me fala, porque você fez isso? Você sempre me conta tudo, porque não me conta agora?
Natan olha fixamente para o fundo do galinheiro, perdido em pensamentos. Parecia estar numa espécie de transe, com os olhos sem piscar e com a boca semi-aberta.
-Natan, me conta agora! – endureceu Márcia, lhe dando uma sacudida forte, fazendo o menino arrastar os pés pelo chão a ponto de quase cair.
Ele a olhou sério, cerrou a boca e tirou seu braço da mão de Márcia bruscamente. “Porque isso tudo? O que eu fiz para ele ficar assim? Não sou uma boa mãe? Será se dei carinho demais e não fui dura nos momentos precisos?” – pensava Márcia, encarando uma criança exteriormente parecida com seu filho.
O silêncio continuava.
- Vamos  para dentro. Lá a gente conversa direito. – direcionou-se Mônica de mãos dadas com sua filha para a portinhola do galinheiro.
Natan se soltou das mãos de Marcia, pegando a faca jogada e a apontou para sua tia, ameaçando-a com um tom sombrio e com voz gutural:
- Fale alguma coisa que eu te pico, prostituta!
Tudo foi tão rápido que Natan nem vira a faca sendo jogada longe por sua mãe e um tapa lhe acertando bem em cheio no rosto.
- Agora foi demais! Vamos embora pra casa, agora! Vamos acertar as contas!
Márcia odiou seu filho pela primeira vez na vida. Odiou tanto que ao leva-lo da casa da irmã, nem se despediu dela e muito menos de Anselmo voltando da cidade.
Entrando no carro, o menino se recusou a ir com ela.
- Entra agora, rapazinho. Não me deixe com mais raiva.
- Não entro. Quero ficar aqui.
- Não me deixe com mais raiva, Natan. Eu também posso mudar se necessário.
            Ele estava do lado de fora próximo à porta de acompanhante do carro. De braços cruzados, sério, deu as costas e ficou estancado. Deu um sorriso malicioso às escondidas enquanto sua mãe saía do carro para lhe ir ao encontro.
            Quando ela o virou pelo braço, Natan perdeu toda a força do corpo, caindo no chão e batendo com a cabeça num banquinho de madeira batida bem em frente à casa. Ela recuou um momento e aguardou qual seria a próxima reação do menino. Nenhum sinal de movimento, nem ao menos de respiração que transparece pelo ir e vir da caixa torácica. Natan se debruçara sobre os dois braços, com a nuca no chão. Márcia batia os pés, impacientemente, esperando alguma atitude estranha do filho. Só não esperava que esse teatro todo acabasse numa poça de sangue acobertando o chão de terra da casa de seu Anselmo.

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            No hospital do município, tiveram de aplicar anestesia para dar dez pontos, fechando o corte na nuca de Natan. Márcia estava em frente do hospital arruinada com a situação. Seu filho estava piorando e com certeza agora precisaria de mais médicos e mais exames para um problema incomum. Mais gastos, que apesar de sua boa situação, teria de apelar para o serviço público, pois muita coisa viria por ali.
            Uma enfermeira conhecida pela cidade toda caminhou até a porta do hospital chamando pela Márcia, uma antiga conhecida sua.
            - O médico está te chamando lá dentro.
            Estando dentro da sala de curativo, o médico lhe pedia um ultrassom da cabeça.
            - Melhor assim. É bom saber se ele não deu nenhuma fratura ao cair.
            - Claro, doutor. Amanhã mesmo estarei fazendo.
            Assim foi feito. Com os exames prontos e com o laudo médico, menos uma preocupação para Márcia. Natan estava bem. Pelo menos era isso o que ela pensava.
            - O que eu tenho mamãe? O que eu fiz? – perguntou inocentemente Natan, sendo colocado para dormir naquela noite de muito calor. – A senhora não me fala o que eu tenho!
             Márcia pôs-se a refletir de como falaria coisas além da imaginação infantil para o filho que nem tinha idéias do que é uma prostituta.
            - Você não se lembra de nada, meu filho? Nada do que fez, do que falou?
             -Não lembro mamãe. Só lembro de ter acordado no hospital e que minha cabeça doía muito.
            - E antes disso? Quando brincava com seus primos, quando entrou na cozinha escondido de mim? Não se lembra de nada?
            - Só me lembro de ter visto o tablet da Dirlene e depois disso, hum... Depois disso... Ai minha cabeça...
            Márcia se apressou para o filho deitado e lhe abraçou.
            - Não precisa fazer força para lembrar, meu filho. Estou contigo agora e é isso o que importa.
            - Posso deitar contigo hoje? É só hoje, juro.
            Márcia olhou seriamente para ele num breve momento e deu um leve sorriso.
            - Só hoje, né?
            - Sim, só hoje.
            - Então vamos.
            Ele se levantou, apertou a mão de sua mãe e caminhou com ela até o quarto de casal.
            - Vá deitando que logo logo estou com você. Só vou escovar os dentes.
            - Vem depressa que quero dormir com você do meu lado.
            - Sim, Nathan. Já estou indo.
            Por que isso não deveria ser uma prova de fé? Afinal, Deus não abandonaria seus filhos à mercê dos infortúnios da vida. Márcia se preparara e estava enfrentando tudo com muito fervor e Jesus caminhava consigo em todos os passos difíceis da vida. Agora ele estava ao seu lado, balbuciando em seus ouvidos que sempre estaria com ela, seja em qualquer momento da vida. Márcia cria nisso, assim como cria nos momentos felizes e tristes da vida eram passageiros. Bem que ultimamente ela não andava tendo alegrias, e por algum momento, acreditava ter Deus a abandonado. Sentia-se repulsiva, digna de pena de si mesma. “Quem sou eu para descobrir os desígnios de Deus? Uma reles mortal...” Assim, levantava a cabeça e seguia em frente. O desânimo batia às suas portas em qualquer dificuldade, sempre lhe tirando as forças. Mas a fé agia nela, como uma bengala ajuda um senhor de idade a caminhar. Os sentimentos eram ambíguos, desvanecendo-se do ódio para o amor; do amor para o ódio. Da tristeza para a alegria, da alegria para a tristeza...
            Há muito tempo não ia à Igreja. Tinha fé, mas não tinha tempo para orações. Nem se lembrava mais como fazer suas preces e nem ao menos lia a Bíblia. A doença bateu em sua casa e os costumes do cotidiano foram se perdendo como poeira ao vento. Sua concentração era voltada totalmente aos cuidados e aos atos sublimes de superação e tristeza contínuos. Não tinha como forçar a si mesmo a fazer algo que não conseguia. Mas pensava muito em Deus. Não ajoelhava e nem abaixava a cabeça, mas conversava com Ele quando estava no hospital ou se perdia no meio de uma oração quando ia dormir. Esse era o máximo conseguido de seu esforço. “Deus saberá entender. Afinal, Ele conhece minha humanidade”.
            Dizia-se estar tudo bem, mas desde que Natan começara com a doença sua alma estava inquieta. Desde sua melhora em tempos de Natal, ela sentia algo muito estranho e isso a incomodava. Às vezes, deixava alimentos no fogão queimando, o leite fervia e derramava. Esse algo intuitivo a massacrava por dentro, aleijando-a, fazendo de sua caminhada ininterrupta para o céu num verdadeiro inferno. Tudo estava tão esquisito, uma inquietação como algo ruim viesse a acontecer todo momento, uma impressão de uma desgraça advinda de qualquer lugar em qualquer momento.
Finalizando o seu tormento, toda sua intuição se confirmava nos últimos dois dias. Isso era o pior de tudo. Não era possível que toda aquela inquietude interna estava se concretizando externamente. “Pensei que era besteira, que fosse um pressentimento só. Mas, chegar nesse ponto?”.
Na frente do espelho do armário do banheiro, Márcia se encarou por um momento. Com olheiras profundas, boca esbranquiçada e cabelos atrapalhados, aproximou seu rosto bem próximo para que pudesse ver claramente suas pálpebras. Lívidas como leite e seus olhos, avermelhados. “Não estou muito bem. Estou acabada... Muito acabada... Que Deus me ajude.”
- Natan, estou indo agora. Já terminei.
Descalça e pijama posto, Márcia caminhou calmamente, desejando ter uma boa noite de sono para tranquilizar sua ansiedade. Tudo aquilo era demais para ela. Era como se todas dificuldades de toda sua vida se acumulassem e desabassem sobre sua casa nos últimos dias.
Na porta do quarto, ela parou. Não tinha de ter sossego ainda aquela noite.
A janela estava aberta e Natan não estava deitado.
- Natan! – chamou ela – Cadê você?
Seu pulso estava acelerado. Olhou para todos os cantos do quarto, inclusive debaixo da cama. Correu para a janela e se sentiu mais aliviada: com o portão trancado, ele não estava no jardim defronte à casa.
- Natan – ela agora berrava – onde você está?
Virou-se assustada com algo caindo no chão. O barulho vinha do banheiro, como algo quebrando e retinindo pelo piso.
- Natan, você está aí?
Com a ausência da resposta, ela foi até ao banheiro com cautela, temendo ser uma outra pessoa, que não o seu filho.
- Natan?
A noite poderia não terminar assim. Márcia queria só uma noite de sono, só isso, mas o destino a traía. A traía covardemente. Precisaria agora ficar mais uma noite inteira acordada, prestando socorro ao seu filho Natan. Porque isso acontecia? Porque logo com ela, tão devota e tão fiel a Deus, o criador de todo o universo. Não entendia como Ele poderia deixar Natan ser vítima de uma doença tão cabal e agora, violenta. Como ela saberia agora se comportar com seu filho arrancando os pontos da cabeça com uma tesoura, ensangüentando todo o piso do banheiro e toda a pia? E agora, noite alta, iniciando uma chuva forte, apagando toda a luz do quarteirão, como comportar diante daquela imagem horrível de sangue salpicado por todo o banheiro?
Na penumbra da luz se apagando, Natan se vira para sua mãe e solta um grito. Márcia se sente toda arrepiada por aquela voz indescritível, parecendo ser várias vozes gritando em coro, que porventura também assustara seu espírito. Esse ficara irrequieto e começara a desconfiar se a alma de seu filho Natan ainda habitava aquele corpo.

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