Discussão Dorense

Discussão Dorense

quinta-feira, 18 de abril de 2013

O EXORCISMO DE NATAN - capitulo 7

        Márcia aguardava na sala de espera. Os enfermeiros e médicos andavam pelo corredor do hospital com suas pranchetas e estetoscópios. Alguns demonstravam canseira e ansiedade, revelando o quão difícil é a profissão da área de saúde. Uns pacientes conversavam na portaria, outros aguardavam sentados uma consulta com o médico escalado para aquele dia.
        Dentro da sala de encefalografia, Natan estava deitado numa cama hospitalar enquanto duas profissionais colocavam fios grudados a uma massa mal cheirosa em diversos pontos de sua cabeça. Uma mulher mais velha esperava pacientemente na frente de um computador todos os eletrodos serem postos em seus lugares corretos.
        Natan era uma criança bonita. Ele não tinha essa consciência de beleza, mas provocava uma sensação de prazer de bem estar às meninas de sua idade até às mais velhas. Às vezes, ficava vermelho e envergonhado por ser encarado pelas garotas na escola e quando passava pela rua da sua casa. As mulheres brincavam, chamando-o de “menino lindo” e ele, muito tímido, costumava correr dos elogios. Era realmente um “colírio para os olhos” para quem o via e ele agora limpava a visão problemática da programadora do encefalograma, que portava um óculos feio com lentes tipo fundo de garrafa.
        Infelizmente, problemas todas as pessoas do mundo tem. Não só pessoas, coisas e animais irracionais também nunca escapam de caminhos tortuosos. A água seca, animais selvagens lutam no dia a dia para se alimentarem e homens batalham contra doenças. Natan, criança, partilhava do amadurecimento adulto precocemente. Com 9 anos passava por dificuldades e seu corpo sofria como qualquer adulto já sofrera.
        Estava calmo naquele momento. Não podia tomar sedativo pois alteraria o resultado final do exame. A mulher o aconselhou a não dormir porque o exame seria rápido e o sono atrapalharia as ondas cerebrais, podendo interferir na leitura encefalográfica. Ele estava deitado, muito quieto, olhos inertes visando o teto, realçando de alguma maneira o roxo em torno de suas pálpebras. Não sabia a muito tempo o que era dormir e muito menos o que é um verdadeiro descanso.
        A porta foi aberta e Márcia foi chamada.
        - O exame está feito. O médico lhe chamará quando o resultado estiver em sua posse.
        Cabisbaixa, ela assentiu sem dizer palavras.
        Entrou na sala de exames e ajudou Natan no toalete a lavar sua cabeça suja daquela massa mal-cheirosa e grudenta.
        Ficaram à espera no corredor do hospital. As luzes do corredor foram se acendendo devido à escuridão invasora quando a programadora saiu com um envelope grande e branco da sala. Ela bateu três vezes na porta do consultório interno do hospital e entrou. Demorou-se por lá uns dez minutos e saiu, adentrando-se pelo hospital, numa daquelas enormes portas de vidro, gerando um reflexo grande e tortuoso quando caminhava frente a ela.
        Sequer passara cinco minutos e o médico chegou à porta.
        - Natan?
        O garoto o olhou sem vida. Márcia estremeceu com o comportamento de seu filho, pegando-o pela mão e andando calmamente até ao consultório.
        - Sentem-se, por favor – disse o doutor, sentando-se também na sua cadeira de madeira velha. – Pelo o que as enfermeiras me disseram, parece que o seu filho está tendo alucinações e distúrbio de personalidade. Você confirma isso?
        Márcia balançou a cabeça positivamente.
        Tinha ali na mesa um cartão e nele o nome do médico: Aloísio Trindade, Neurologista. O endereço abaixo e o número do telefone fixo estavam destacados em negrito e itálico.
        Tirando o resultado do envelope e observando cada página atentamente, todos aqueles riscos incompreensíveis para Márcia a deixavam aflita. Doutor Aloísio mexia a mandíbula como se estivesse mastigando algo, brandamente. Na última folha do exame, ele pega o telefone.
        - Teresa, poderia vir aqui, por favor?
        Num instante, a porta do consultório se abre. Uma enfermeira loira, de média estatura e muito bonita, cabelos cacheados, olhos azuis e usando um batom rosa claro se aproxima de mesa.
        - Poderia levar nosso rapazinho aqui para a cozinha, por gentileza? Dá pra ele aquela gelatina toda especial. Ele vai adorar o gosto de limão com leite condensado.
        Ela o olha com ternura e pega na sua mão.
        - Então vamos?
        Márcia a encara, assim como faz o mesmo com o médico. Aquela sutileza de o tirar do consultório certamente não era previsão de boa notícia.
        Assim que saíra, doutor Aloísio recostou-se à vontade em sua cadeira, pensou bem e iniciou seu monólogo:
        - Pelas atitudes de seu filho, pelas suas variações de personalidades e pelo que vejo em sua ficha, eu presumia um início de epilepsia. Essa doença em si não é psiquiátrica, mas temos de ter um ponto de partida para descobrir todos esses problemas. A senhora conhece a epilepsia?
        -Sim. – respondeu ela, secamente – Já vi uma amiga minha ter uma crise. Meu filho não teve nenhuma crise epilética, doutor. Mesmo se tivesse, essas coisas que andam acontecendo não têm nada a ver.
        - Sim, eu sei. Mas a epilepsia pode levar à depressão. Essas doenças estão muito ligadas e a depressão tem sintomas diferentes, variando de pessoa pra pessoa. Eu desconfiava de seu filho estar iniciando uma depressão precoce, devido à sua idade. Poderíamos iniciar um tratamento adequado se não fosse os resultados...
        - Como assim? – perguntou Márcia, simbilando em sua voz.
        - O resultado não deu nada.
        Márcia temia justamente isso. Queria furiosamente que o exame desse qualquer coisa e que a solução para os problemas se resolvesse em algumas caixas de Tegretol e Depakote. Ela temia as variações do humor do filho não fosse uma doença, mas algo muito mais além. Tinha medo em buscar ajuda nada casuais, porém ainda se apegava à medicina até aos últimos casos.
        - Então, o que o senhor me indica? Isso tem que ter um jeito. Meu Natan não está nada bem e ele fez coisas terríveis. Não quero que ele continue desse jeito.
        - Bem, dona... – o doutor olhou a ficha – Márcia, eu pesquisei sobre o seu filho e vi nas reportagens o que ele fez no Grupo Hospitalar. Temos aqui no São Pedro bons psiquiatras para o seu tratamento. Não seria nada bom ele continuar assim. É bom também acompanhamento psicológico para saber o que o está levando a essas atitudes tão extremas e perigosas. Pode ser algo psicológico. Nos exames não constou nenhum dano nas ondas cerebrais, o próximo passo seria um tratamento, digamos, espiritual.
        Márcia mudou as feições do rosto. “Sim, espiritual”. Ela ficou com o olhar distante a pensar num verdadeiro tratamento espiritual.
        - E se ele visse, assim, um pastor? Tenho um na minha igreja que é ótimo para dar conselhos.
        Doutor Aloísio se incomodou muito com a opinião dela.
        - Isso não é uma boa ideia. Melhor seria um psiquiatra.
        Márcia o encarou bem e redargüiu:
        - O que os médicos não conseguiram, Deus irá prover. Ele é o todo-poderoso e com ele tudo podemos.
        O médico estava acostumado com essas opiniões vindas de religiosos devotos e também com a ajuda da fé na cura de alguns pacientes.
        Como estava arqueado um pouco para frente, ele recostou-se à vontade na cadeira e levantou os braços, num sinal “lavo as minhas mãos”:
        - Muito bem, o filho é seu. Nem sempre a religião pode ajudar as pessoas, principalmente nesses casos. Ainda a verei novamente e pode estar certa que estarei aqui para ajudar.
        - Muito agradecida, mas tenho a melhor ajuda do que qualquer um poderia ter.
        Doutor Aloísio deu de braços e Márcia saltou da cadeira, pondo-se para fora do consultório, batendo a porta.

XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX

        No outro dia, bem pela manhã, Márcia ligava do prédio no qual estava hospedada, no centro de Porto Alegre.
        - Pastor Eduardo?
        - Sim? – respondeu uma voz aguda, meio rouca, carregada de sono.
        - Me desculpe ligar assim tão cedo. Aqui é a Márcia, da igreja.
        - Márcia? – indagou o pastor, não recordando muito bem.
        - Sim, a Márcia.
        - Ah, sim,  - respondeu ele, reconhecendo a voz e envergonhado de seu devaneio – O que aconteceu, minha filha? Não tenho te visto nos cultos. Tudo bem com você? E o seu filho?
        Com tantos questionamentos e pelo tom da voz, percebia-se o interesse do pastor pela a saúde de seu filho.
        - Er... Na verdade, pastor, as coisas não andam muito bem. Estou tendo muitas complicações com o Natan.
        O reflexo do sol poente batendo sobre o balcão de vidro fazia Márcia esconder o rosto com a mão. O movimento dos hóspedes se intensificava a cada minuto no hotel. Uns reclamavam do elevador quebrado enquanto uns do lado de fora gargalhavam.
        - Não sei, pastor. Recorri a todos os métodos possíveis: fui nos médicos, fiz exames. Nada explicou o comportamento do meu filho. Eu queria que você o visse agora. Esgotaram-se minhas alternativas.
        Houve um breve silêncio do outro lado da linha.
        - Como assim? Eu não sou médico, minha filha.
- Eu sei que o senhor não é. Estou desconfiada desse problema dele. Tá parecendo ser outra coisa.
Ouviu-se um bocejo do outro lado. Pastor Eduardo não dormira bem à noite em virtude de pesadelos estranhos, problemas carregados desde sua infância.
- Realmente, não estou entendendo como “EU” posso ajudar. Não é má vontade, mas a única maneira e com certeza muito eficaz seria orar por ele. Se eu soubesse de suas dificuldades antes, eu já estaria intercedendo junto a Jesus.
- Eu sei disso, pastor. Mas gostaria muito de sua visita e que o visse pessoalmente.
Outro silêncio na linha.
- Estou com muitos compromissos hoje, Márcia. Tenho problemas da igreja e meus também, todos pedindo para serem resolvidos ontem. Você me entende? Onde você está?
Márcia dera um suspiro, levou o gancho do telefone ao peito, levantou a cabeça para os céus, mirando o lustre transparente do teto do primeiro andar do hotel e fechou os olhos por um momento.
-         Alô? Márcia? Ainda está aí?
Um zumbido incomodou o tímpano do Eduardo, como se estivessem esfregando um pano de tecido grosso no microfone do aparelho.
- Sim. Estou aqui.
- Onde você está?
 - Estamos em Porto Alegre.
- Se estivesse mais perto... Eu não mediria esforços e iria com certeza. Posso saber do que se trata?
Márcia estava com a alma enfraquecida. Não queria contar ao pastor as suas conclusões até agora. Queria conversar pessoalmente, queria desabafar, chorar ainda mais.
Precisava de um ombro amigo e confidente e o pastor Eduardo possuía o perfil perfeito.
- Natan está doente da alma. – respondeu ela.
                Era o máximo que podia responder, afinal. Por mais que pensasse, essa era a única resposta satisfatória para o pastor por meio de uma conversa à distância.
        - Ah, sim. Compreendo bem. Esse mal requer muito a ajuda de Deus e quanto antes o procurarmos, melhor será para seu filho. Eu não vou lhe desamparar e muito menos o nosso pai eterno.
        Márcia se animou ao ouvir o comentário do pastor. Ele enfim percebia de suas necessidades e nem precisou ser tão clara, poupando-a do constrangimento de comentar problemas pessoais por telefone próxima de ouvidos curiosos.
        - O senhor vai vir?
         - Infelizmente não poderei ir, mas lhe indicarei um pastor que ministrou um curso de Teologia para mim na qual me possibilitou ministrar a igreja daqui. Ele é de Porto Alegre mesmo. Um homem muito competente, honesto, de uma inteligência enorme. Ele também é formado em psicologia e entende muito de depressão. Ele irá ajudar muito no caso do seu filho. Tem caneta e papel?
        Márcia anotava com um semblante decepcionado o nome e o número do pastor. Eduardo não entendera a doença de seu filho como uma provável possessão, mas como uma doença corriqueira e comum. Ela não queria psicólogos. Ela queria ver um pastor como um pastor, capaz de expulsar entidades e dar tranqüilidade para a família para o resto da vida.
        “Pastor  Jó”, dizia um pedaço pequeno de jornal velho que Márcia anotara. Bem embaixo, seu número sem o DDD. Ela olhou bem o papel e o número. “Nome bem bíblico. Não poderia ser outra pessoa senão um pastor” – pensou ela. Teve ânsias de o amassar e o jogar na lixeira da portaria, junto às latas de refrigerante e garrafas descartáveis de água. “Não custa nada. Quando ele vier ao meu apartamento, eu conto a história e ele com certeza irá me entender.”
        Ao se virar para tomar rumo ao seu quarto, pessoas corriam assustadas, gritando umas com as outras enquanto alguns da portaria perguntavam curiosos o que se sucedia.
-         Tem um demônio no quarto 14. Nunca vi alguém gritar daquele jeito.
        Márcia correu logo escada acima, como a chave na mão, esbarrando com força nas paredes . Os hóspedes falavam um com o outro, conversando num tom relativamente médio, possibilitando Márcia ouvir e subir ao seu quarto apressada.
        -Saiam todos daí. Meu filho está doente e vocês saem falando para todo mundo que tem um demônio aqui! Saiam logo, saiam!
        Os mais velhos murmuravam da falta de educação daquela mulher. Os adultos saíram cabisbaixos e nem sequer a encaravam.
        Entrou e bateu a porta com toda a força a porta. Girou a chave duas vezes e correu para o quanto, onde deixara Natan amarrado à cama por dois panos grossos à cabeceira e aos pés da cama. Ele estava imóvel.
        Ao vê-la na porta do quarto, Natan continuou com seus urros, ora agudos, ora graves. Às vezes chorava, mas também gargalhava como um louco.
        - Para com isso, Natan – gritou Márcia. – Você está assustando todo o prédio!
        Ele levantou o pescoço lentamente e parou com os gritos. Olhou sua mãe, girou um pouco a cabeça para o lado, deixando mostrar a marca roxa em seu pescoço, como se mãos fortes o tivesse enforcado.
        - Who are you? – perguntou Natan, com sua voz gasta e falhando.
        Márcia não respondera. Ele sabia muito bem que era sua mãe ali, com lágrimas nos olhos.
        - Gesù Cristo non sei qui, mama mia. Io sto. Io. Resta con me e ascolta la voce del diavolo.
        Ela tampou a boca e se sentou no chão. Com as mãos na boca para cobrir os soluços, olhava estarrecida para a cama pulando com a força dos pulsos de Natan.
        - Quiero morir. Quiero morir. – gemia ele, rindo e sacudindo com força a cama do pequeno quarto de solteiro.
        O sangue de seus pulsos pingava no tapete marrom do quarto. Márcia não tinha forças para se levantar, percebia somente o piso gelado sob suas nádegas lhe entorpecendo calmamente as pernas. Não havia nada a fazer.
        Natan silenciara-se e o quarto todo ficou com um zumbido inquietante. O eco de sua voz retumbava pelas paredes. Márcia agarrou com força seus cabelos e escondeu a cabeça entre as pernas. Sua calça jeans estava ensopada de suor e lágrimas e o chão todo manchado com a marca de seus pés descalços. Ele havia retirado a sapatilha e nem havia percebido.
        Uma saliva saía da boca do menino enquanto ele dormia como um louco amarrado num manicômio, tremendo todo o corpo de minuto em minuto, envolto numa espécie de crise nervosa.

XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX

        - Pastor Jó?
        - Pois não?
- Quem fala é a Márcia. O pastor Eduardo de Hulha Negra me deu o seu número caso precisasse de sua ajuda.
- Diga, minha amiga. Estou todo ouvido. Eduardo sempre será um grande amigo meu e os amigos dele serão os meus também. Deus não desampara e eu tento acompanha-lo
- Meu filho está muito doente, doutor. Poderia vir aqui em casa para conversarmos melhor? Não gostaria de falar desse assunto por telefone.
- Sim, com certeza. Qual o seu endereço?
 - Avenida Vargas. Prédio Ipojuca, apartamento 14. Irá demorar muito?
 - Estou perto. Estarei no prédio daqui meia hora. Poderia me receber na portaria?
- Sim, senhor. Estarei lá.
Uma conversa breve. Tudo decidido. Jó, com espírito contemplativo e estimulante, sempre estava disposto a ajudar. Márcia percebera tudo isso pela conversa e pela voz calma e branda do pastor. Ele conversava como estivesse numa oração serena, firme e disposta, como quem saía para o deserto da alma a fim de reflexão e meditações. Toda essa energia transmitida para Márcia pelo telefone fê-la disposta a confiar mais em si e em Deus. Nada havia acabado para ela e nem para Natan.
Por volta das seis e meia da tarde Márcia, trajando uma calça jeans e uma camisa de malha azul, aguardava o pastor na portaria do prédio. Demonstrava inquietação, nervosismo. Sua cabeça girava para olhar o relógio imnportado da China pendurado acima da imagem de Maria, sobreposta acima da porta do elevador quebrado.
- Dona Márcia?
Ela girou o pescoço pra frente e se deparou com uma figura jovial, de cabelos escuros e olhos castanhos. Tinha no máximo trinta anos. Seu sorriso poderia alegrar a tristeza em si e no entanto, Márcia não concluiu  outra coisa além de esperanças e um recomeço divino em sua vida.
- Pastor Jó? É mesmo você?
- Porque  a surpresa?
- No telefone parecia ser uma pessoa... – ela hesitou.
- Mais velha?
Márcia sorriu desconcertada.
- Sim.
- Não esquente – emendou ele – todos falam o mesmo.
Jó sorriu novamente. Ele realmente era a pessoa que Márcia mais precisava agora. Alguém feliz, um homem da Palavra e irradiante como o sol.
- Podemos entrar?
- Sim, como não.
Na porta do apartamento, Márcia oferecia algo ao pastor.
- Água, por favor. Estou com muita sede. O calor dentro do ônibus estava escaldante.
Voltando com o copo em mãos, ela olha Natan pela fresta da porta. Ele a encarava com os olhos esbugalhados de pavor. O suor minava de sua testa e suas pernas mexiam com leveza no colchão.
 -Em que posso ajudar, dona Márcia? Quais são os seus problemas?
Sentada ao sofá, com as pernas cruzadas, montava as peças do quebra-cabeça da sua vida nas últimas três semanas. Por onde começaria?
- Como Deus pode ajudar em suas aflições?
Márcia gaguejou na primeira frase. Parou um pouco, encarou o pastor, descruzou as pernas.
Assim tomou firmeza e contou toda a história: desde os fatos, até a sua convicção de que Natan estaria possuído.
Jó demonstrava interesse e nenhum momento da conversa alterou o semblante: permaneceu sereno e não interrompeu o relato para meras opiniões.
- O que acha? O demônio realmente pode estar no corpo dele?
O pastor coçou o queixo, espetando a ponta dos dedos com sua barba pequena e rala.
- Pouco provável. Possessão demoníaca é coisa do passado, bem típico da época de Cristo e da Idade Média. Na era Moderna, com o avanço da Medicina e da ciência conseqüentemente, descobriu-se várias doenças e o exorcismo foi “exorcizado” praticamente. Muitas pessoas na época de Cristo sofriam de epilepsia e eram julgados pelos sacerdotes como possuídos. Cristo mesmo curou doentes pensando ser eles possuídos pelo demônio.
 - Nem me fale dessa doença.
- Porque?
- Fizeram exames no meu filho para ver se portava a disritmia, mas os resultados apontavam negativo.
- Isso é muito bom.
- Fiquei desencantada com a medicina. Eles pedem pra ir aqui, ir ali. Preferi pedir ajuda no lugar certo de uma vez. A ajuda de Deus.
- A senhora faz muito certo de procurar Deus. – disse Jó, tomando o resto da água. – Eu, sinceramente, acho um equívoco enorme dizer que seu filho está possuído. Ele deve ter uma doença rara e a senhora deveria procurar mais a fundo isso.
- Não quero. Se tivesse atrás de um médico, estaria num consultório agora ao invés de estar aqui falando com você. Venha ver meu filho e tenho certeza que mudará sua opinião.     
Márcia se levantou primeiro, vindo Jó logo em seguida, caminhando calmamente ao corredor estreito que levava à cozinha.
Ela abriu a porta para os dois entrarem. Fechou-a logo em seguida, cuidando para fazer pouco barulho.
Natan dormia profundamente. Percebia-se pela primeira vez nos olhos de Jó o medo e a desconfiança.
 - O que você andou fazendo com seu filho? Olhe o seu estado...
Márcia, longe da cama ao canto do quarto, falou em sussurro:
- Se não o amarrasse, ele teria feito coisas bem piores daquelas que te contei.
O pastor já fora chamado diversas vezes por pais e mães aflitas desconfiadas de casos de possessão. Nunca vira uma criança amarrada, com marcas em todo o corpo e com o pulso sangrando.
- Ele precisa ir a um hospital agora. Olhe os pulsos dele. Em breve terá uma anemia, Márcia. Isso é covardia e maus tratos ao menor!
- Ache o que quiser, pastor. Primeiro vá até ele, tente falar alguma coisa de Deus para ver sua reação. Não o levarei no hospital novamente até ter certeza que meu filho não está possuído.
Jó sentia a firmeza nas palavras de Marcia. Sentia seu pulso forte, sua convicção e até uma certa indelicadeza.
Ele estava ali para ajudar. Tentaria conversar com Natan a pedido de sua mãe, enfim, sua função na vida era senão atender aos desígnios de Deus, colaborando e salvando almas de quem mais precisava.
Ele se aproximou na cama e teve náuseas. Não havia percebido ao entrar no quarto o forte fedor de urina, tamanho o horror ao ver a situação daquele menino na cama.
Esticou o dedo indicador para tampar o nariz e colou os olhos na marca roxa no pescoço do garoto. Sentou-se na cama, arredou os lençóis mau-cheirosos e engoliu o vômito que lhe subia pela garganta.
- Natan? Você está acordado?
O menino, virado do outro lado da cama, abriu os olhos. Jó ficou ereto para ver o seu rosto.
- Podemos conversar? Sua mãe está logo ali, contigo. Não precisa ter medo.
Natan, com o rosto afundado no travesseiro, balançou negativamente a cabeça.
- Vamos fazer o seguinte: vou desamarrar a sua mão pra gente conversar um pouco. A gente vai se sentar e vamos falar de como você está se sentindo, tá bom?
Jó recebeu um aceno positivo de cabeça.
Márcia não saiu do canto. Olhava o pastor desamarrando com toda sua força os panos grossos , ora com toda a mão, ora com a ponta do dedo.
- Se eu fosse você não faria isso. – advertiu ela.
Arfando com força, Jó a olhou mas não disse nada.
- Ele não pode ser desamarrado. Depois eu não conseguirei amarrar novamente. Eu só consegui prendê-lo porque ele estava sedado. Ele poderá fazer coisas graves com as mãos livres.
O pastor continuou o trabalho. Após quinze minutos, ele passou para o outro lado da cama.
Sobre Natan deitado, ele tentava desamarrar o outro pulso. Suas mãos estavam muito cansadas, dificultando o desatar daquele nó enorme e muito bem amarrado.
Natan sentia o sacolejar frenético de Jó sobre si. Sentia sua mão direita livre e a esfregou com força sobre o colchão macio, certo de ainda possuir o tato.
O pastor queria ver aquela criança inocente livre daquelas amarras. Queria falar para Natan, transmitir-lhe a Palavra e demonstrar-lhe a grandiosidade do amor incondicional de Deus para com ele e sua mãe. Ele era escravo e agora se tornava livre, como o Pai Eterno criara o Universo.
Natan balançava o braço, tentando retirar a rigidez do bíceps. Jó suava sobre o cobertor, tentando a todo custo desamarrar o outro braço gastando todas as suas forças.
- Deus irá prover, Deus irá prover!
Márcia soltou um grito ao ver Natan, de punho fechado, acertar em cheio um soco certeiro e bruto na orelha do pastor, fazendo-o cair da cama, gemendo de dor.
- Natan, não faça isso! – esbravejou Márcia, acudindo Jó ao chão, que falava coisas inaudíveis esfregando a orelha vermelha com a mão.
- O senhor está bem?
Natan fixava os dois ao chão: Jó, com o rosto virado para a porta do quarto; Márcia, ajoelhada, tentava de alguma maneira ajudar a dor lancinante do ouvido do pastor.
Ele nem sequer falara nada. Só o agrediu por uma vontade súbita, talvez um jeito de aliviar a tensão por ficar tanto tempo deitado. Seu olhar frio, calculista, tragava as vontades da mãe pelo seu comportamento e extirpava todas suas boas intenções.
- Isso mesmo, puta! Cavalga no pau dele porque estou a fim de um show particular hoje. Me dá esse prazer já que essa espelunca não tem nada para beber.
Márcia pulou sobre a cama e esbofeteou Natan, fazendo-o cair desacordado. Ele mexia a cabeça freneticamente como um louco perdido, ora fechando os olhos, ora gargalhando e chorando logo depois.
Ele parou de repente quando o pastor se levantou do chão. Olhou-o, se encolheu para trás e suplicou para a mãe:
- Não deixa ele vir aqui, mamãe. Ele é mau!
Márcia, cansada de tudo aquilo, daquele teatro todo, das variações de humor de seu filho, de sua dupla personalidade, chorava e sentia tonturas. Deu uma dor de cabeça tão forte que não suportou: caiu desmaiada da cama, batendo com a cabeça no piso frio do quarto de Natan.

XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX

- Márcia, Márcia...
Com a cabeça doendo e com dores no pescoço, Márcia se deparou com a imagem de Jó, sentado ao seu pé no sofá da sala do apartamento. Ele ainda punha a mão no ouvido, exprimindo dores ao franzir as sobrancelhas.
Ela estava deitada. Virou-se um pouco e deitou os dedos no tapete da sala, sentindo um copo ali. Olhou, sentiu sede e tomou a água que tava nele, saciando o mal-estar na garganta.
- Por quanto tempo eu apaguei?
- Cinco minutos, no máximo.
- Como está Natan?
- Eu o amarrei novamente. Ele está acordado mas ausente do mundo.
Márcia, com a mente toda embaralhada de pensamentos, custou a reunir alguns tópicos, no mesmo tempo que se levantava para se sentar ao lado do pastor.
- O que o senhor acha? Ele pode estar possuído?
- Senhora, o que o seu filho precisa é de um psiquiatra. Ou psicólogo, também pode ajudar. Ele está com problemas seríssimos e eles devem ser tratados adequadamente. Eu não posso fazer nada além de orar. Me desculpe.
- Você é psicólogo. Olhe meu filho como um profissional, já que não quer olhar como pastor.
Jó ignorou completamente a provocação de Márcia. Levantou do sofá, desamarrotou a calça social com as mãos e saiu imediatamente sem ao menos despedir-se. Márcia não acreditava nisso.
        - Meu Deus! Me ajude, fui abandonada! Nem um servo seu quis me ajudar!
        E chorou copiosamente. Chorou as amarguras da alma, chorou as tristezas de mãe. Como ficaria seu filho, saído de suas entranhas, a qual cuidou tão carinhosamente e de tanto futuro pela frente? Seria agora o fim?
        - Levarei meu filho novamente no médico. Nem que eu vá até ao fim do mundo, terei meu filho de volta.
        Na sexta, pela manhã, um táxi parava em frente ao prédio. Márcia saía com Natan enrolado em cobertas, pois não queria que ninguém visse suas mãos amarradas pelas costas.
        - Por favor, me leve nessa rua?
        Entregou um pequeno pedaço de papel todo amassado ao motorista idoso, que consentiu com a cabeça ao ver o endereço.
        Os prédios passavam pela visão de Márcia como uma grande selva de pedra. As casas eram as palmeiras, os arranha-céus as figueiras troncudas e fortes. Os mendigos deitados na calçada no centro da cidade eram as presas fáceis para os tigres e onças devoradores de dignidade.
Uma fila enorme cruzava uma esquina logo adiante, findando-se no caixa da Casa Lotérica. Enfim, o prêmio estava acumulado em doze milhões de reais.
        O rádio do táxi tocava Adriana Calcanhoto, num som bem ambiente. “Entre por essa porta agora, e diga que me adora, você tem meia hora...”. Ao cruzar uma esquina à esquerda, a rádio perdera o sinal, fazendo o motorista mudar de estação, penetrando o automóvel com um som de João Bosco e Vinícius. Era um dueto típico de cantores caipiras mesclado à composição moderna de sertanejo universitário.
        Uma mulher jovem passava com sua blusa de couro, um gorro felpudo bem grosso e as mãos enfiadas nos bolsos da calça jeans. Sua tiracolo era de um cinza bem claro, destacando as fivelas grandes e amarelas, refletindo a luz do sol nascente.
        Todos esses detalhes da manhã de Porto Alegre descansavam o espírito de Márcia. Nunca vira a cidade como via agora, tão calma e atraente, tão em paz. Era provável que o inferno se deslocara do fundo da terra para a sua vida. Respirava profundamente o ar fresco da manhã dentro do táxi, mas coçou o nariz quando penetrou junto com o ar o fedor expelido dos canos de descarga dos outros carros na avenida. Era um aviso: nem sempre tudo é tão bom e tão mal. Sempre há um meio termo. Yin yang.
        No trânsito, a correria tinha início. A maratona dos trabalhadores começava a fervilhar: carros buzinando, motos em alta velocidade, pessoas andando e falando pelo celular.  Típico de uma metrópole, capital de um estado considerado o que fornece melhor qualidade de vida à sociedade. Porto Alegre, além de ter clima parecido com  países europeus onde há regiões que nevam, portava grandes características culturais do Velho Mundo, principalmente da Itália, como restaurantes com comidas típicas desses país e produção de vinhos de primeira, fabricado por descendentes de imigrantes.
        Foi perto de um desses restaurantes onde o táxi fez sua parada. Com dificuldades de tirar Natan no colo, o motorista fez o que pôde, saindo lento do banco de motorista para ir até à porta de passageiro, abrindo e facilitando a saída de Márcia e o garoto.
        - Obrigado. Tome seu dinheiro.
        Enfiou a mão no bolso e entregara uma nota de cinqüenta ao senhor. De óculos e meio trêmulo, ele desliza a mão no bolso de trás da calça e retira sua carteira nova de curvim, voltando um real de troco a mais por não ter pratas. Fez um aceno com a mão, agradeceu, caminhou até na frente do carro, observou os dois lados da avenida e entrou no táxi, dando a partida e seguindo seu destino de aposentado trabalhador.
        Diante do movimentado “Cocina Italiana”, Márcia sentiu o cheiro forte do café. O balcão dentro do restaurante, feito de cedro, era pintado com as cores da bandeira da Itália, desenhado por cima uma boca grande com a língua para fora lambendo os beiços. A propaganda não era grande coisa, mas pelo asseio dos funcionários e pelas vestimentas das pessoas zanzando ali dentro, o lugar era famoso e bem conceituado. Todos os garçons usavam camisa social branca, gravata borboleta e aventais com as cores da bandeira da Itália e aquela boca horrorosa, parecendo divulgação da revista Playboy ou do Rolling Stones. A calça era social e preta, dessas compradas em bazares por ninharia inferior a vinte reais. O restaurante era grande e tinha por volta dez garçons, contando entre homens e mulheres, assemelhando uma única coisa entre eles: a jovialidade. Não tinham mais que vinte anos cada um e todos prezavam pelo emprego, trabalhando com entusiasmo e destreza.
        O consultório do doutor Federico, pela descrição da secretária, ficaria logo do lado desse restaurante. Era uma casa, à primeira vista. Com uma cor alaranjada forte destacando a fachada e com a mesma cor de menos intensidade em torno das duas janelas, expressava um sentimento de casa recém-construída aos olhos virgens daquele bairro. Uma cor chamativa, bonita, dá a conotação de “novo” ou uma construção jovem. A porta, não diferentemente na cor, ficava bem ao meio das duas janelas, com dois degraus para dar acesso ao seu interior. Entre a janela esquerda de quem entrava e a porta, uma placa maciça, bem esculpida e talhada como um pergaminho da era cristã, dizia: “ Federico Zülmer – Psicólogo”.
        Uma senhora gorda saiu do consultório, esquecendo a porta aberta. Esse psicólogo era famoso por solucionar casos de obesidade tendenciosos à morbidade sem utilização de qualquer método medicamentoso. Além de psicólogo, Federico era formado em Medicina e especializado em Psiquiatria, o que lhe dava respaldo para tratamentos químicos. Vendo na Psicologia uma alternativa saudável para tratamento, ele seguiu o doutorado e ganhou renome nacional em tratamentos não-quimioterápicos.
        Aproveitando-se do descuido da senhora, Márcia apressou-se a entrar para o consultório com o filho no colo. Para sua sorte, havia somente uma paciente à espera. Praticamente uma adolescente, a garota não conseguia ficar cinco segundos na cadeira. Negra e esguia, ela passava a mão freneticamente nos cabelos crespos, esfregava o queixo no peito e enfiava o nariz por entre os dedos, suspirando forte. Às vezes, ela parava defronte à tv de LED pequena do consultório e a encarava, sem piscar. Girava o pescoço lentamente para um lado e para outro, até sair dando dois pequenos pulos pra trás e vindo se sentar novamente. Uma senhora a acompanhava, parecia ser sua vó. Ela bordava e todo o frenesi de sua neta não a incomodava. Trabalhava bem os pontos, cruzava as duas agulhas grandes de plástico azuis escuras, fazendo o novelo tomar forma de um enfeite para mesa de cozinha. Tão bonito aquele trabalho!
        Márcia sentiu um calafrio. Onde quer que fosse, havia loucos a rodeando. Eram  de todas as idades, de várias classes sociais, de várias etnias. A loucura não escolhia a quem possuir, com quem acabar. Ela era a desgraça e com ela não havia alternativa: a cada arma contra ela, sempre uma contra-investida com força de esmagar e reduzir ao pó.
        Ela deitou Natan numa poltrona. Dirigiu-se até à secretária distraída com anotações em fichas de controle de pacientes e fez um “hum-hum” com a garganta, dando um choque na funcionária, totalmente envolta no trabalho.
        - Pois não, senhora.
        - Tenho hora marcada com o doutor agora, às dez.
        - Deixe-me dar uma olhada. -  a secretária, uma jovem bonita de olhos cor-de-mel e cabelos claros, tirou de dentro da gaveta da mesa uma agenda de capa de couro preta com marcador vermelho.
        Olhou os horários e confirmou.
        - Natan Romualdo Campos – disse Márcia, ao ver a secretária procurando o horário das dez.
        - Sim. Pode se sentar e aguardar, por favor.
        Márcia andou até a poltrona, sentou-se ao lado de Natan envolto em grossos cobertores e dormiu profundamente.
                                                                                                                                     
       

Nenhum comentário:

Postar um comentário