Discussão Dorense

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quinta-feira, 18 de abril de 2013

O EXORCISMO DE NATAN - capitulo 6

        Seu Antônio, como era chamado, tinha oitenta anos quando faleceu. Morrera no quarto infarto de sua vida sossegada e tranqüila. Um senhor esperto, mente aberta, firme de pernas e braços. Compreendia e interpretava boas coisas das quais lia, enfim, era um homem esperto para sua idade.
         Tivera somente duas filhas. Mônica, a mais velha, nascera no período mais negro da história do Brasil: na ditadura. Nascera em dezembro de 1964, com o hospital cheio de policiais arrastando os comunistas para dentro dos camburões e para carros pequenos. Sua família não era do tipo socialista, mas em segredo não admiravam o serviço secreto, fingindo estar sempre amenos a tudo o que se passava.
         Levava a vida em dificuldades. Seu Antônio sempre se acostumara a comer o que plantava, sendo o arroz uma comida fina daquelas em que se come no Natal para celebrar com toda a família. O inhame, couve, frutas mais comuns daquela região como uva, pêssego e laranja do mato faziam parte do cardápio familiar, fazendo daquela família pobre rica em saúde e disposição. Carne, uma vez por mês. Com ajuda da aposentadoria de Dona Maria, sua amada esposa, conseguia comprar dorso de frango nos quartos e quintos do mês, quando a aposentadoria saía. Chegava em casa com a sacola branca e molhada de suor do dorso congelado, cheio de apetite antes mesmo de sua mulher jogar toda a compra na panela alumínio velha e preta do fogão a lenha.
          Dona Maria era uma exemplar dona de casa, até cair na cama com problemas intestinais. A virose atingiu mais de 40% da cidade, fazendo o hospital lotar seus leitos e chamar com urgência ambulâncias das cidades vizinhas. Infelizmente, grande parte dos idosos de Hulha Negra veio a falecer. O funeral, feito no clube do município, apresentou mais de trinta urnas, deixando na memória hulhanegrense a maior tragédia ocorrida desde a fundação da cidade. A família de Antônio chorava a morte da mulher de casa, daquele pilar moral fortificante da casa. Toda ela estava no clube, unida em tristeza junto a outras famílias. Pessoas trançavam entre as urnas, conversavam com seus parentes em tons fúnebres; outros berravam em desespero. Sob algumas, um punhado de sal estava colocado, uns com intenções de conservar o corpo do parente e outros, para espantar maus espíritos, para a alma subir para o céu em descanso.
         Seu Antônio estava encostado à parede no fundo, segurando a paixão por sua mulher no peito. Era insuportável a imagem dela no caixão envernizado. Seu vestido de pano surrado amarelo; sua sandália de couro gasta. Eram nesses trajes que ela o fez passar pelos melhores momentos na vida: o nascimento de Mônica, o fim da construção do casebre. Sempre em algo especial ela botava sua melhor roupa. E agora, ali, inerte, ela estava vestida para o pior momento de sua vida.
         Márcia havia nascido dois anos atrás. Mônica, com uma calça de moleton azul-escuro e uma camisa branca desenhada na frente  com o Mickey Mouse, arrastava sua irmã pela mão pelo clube afora, olhando os outros defuntos e encarando as pessoas conversando baixo e chorando. Passavam em frente ao banheiro feminino e colocavam o ouvido na porta, ouvindo o barulho da descarga.
         O tempo estava nublado. As nuvens, grandes e acizentadas, pairavam sobre Hulha Negra numa espécie de presságio, derramando chuva fina e gelada. O enterro de trinta e três idosos fez a cidade toda fechar o comércio, envolvendo o município num cortejo fúnebre.
         Seu Antônio caminhava silenciosamente por detrás de todo o movimento de pessoas, acompanhado das filhas. Olhava para o chão cascalhado, inerte, sem choro, sem expressão. Márcia, de mãos dadas com ele, o encarava tristonha; Mônica, de mãos dadas com uma prima de Porto Alegre, conversava sobre como era ruim aquela chuva logo naquele dia.
         Percebendo os olhos amargos de Márcia sobre si, seu Antônio, a olhou bem nos olhos e indagou, com voz fraca e distante:
- Sua mãe agora está com Deus, menina. Ela... – ele começou a soluçar, perdendo o controle – Ela...  
E chorou.
A família inteira parou  para o consolar. Ele estendeu o braço, com a palma da mão levantada, num sinal de que tudo estava bem. Ele precisava demonstrar toda sua afeição por sua amada esposa de uma maneira, e a melhor seria chorando. Se mostrar forte numa atitude de machismo que homem não chora nunca, seria a maior falta de respeito da vida inteira com sua Maria. “Sim, choro com toda minha alma. Você me fará muita falta, Maria. Nunca no mundo se fez mulher como você, mulher forte e dedicada. Mulher que amou seu marido e suas filhas. Aquela na qual não mediu esforços para criar decentemente todos da família, dando educação, trabalhando para por comida dentro de casa. Você sempre me ajudou em tudo dentro de casa e ainda vai me ajudar nas lembranças. Mulher forte como minha senhora nunca morre, mas descansa.”
         Um memorial foi colocado na praça principal com todos os nomes dos falecidos: “Uma pequena e singela homenagem a todos aqueles que nos serviram de lição de vida, amor e dedicação. Nunca nos esqueceremos de vocês”.
         Seu Antônio todos os meses ia ao cemitério colocar um girassol no túmulo de Maria. “O girassol sempre se vira para o onde o sol está. E ele agora se esconde por debaixo da terra.” Alguns familiares iam visitar os túmulos de seus parentes, mas com quatro ou cinco meses cessaram suas visitas. Antônio não: depositava lá um girassol por mês até seus últimos dias.
         Passados seis anos, a dor foi amenizada. Os filhos cresceram e com eles, alguma felicidade foi possível para aquele velho sofrido e desgastado pelo tempo. Márcia e Mônica adoravam o pai: gostavam de sua comida, de seu café e principalmente das histórias que contava nos fins de semana em frente sua casa.
         - Pai, faz café pra gente. Seu café é tão bom... O melhor café do mundo.
         - Vou ali pegar a minha meia no sapato e vou coar agora para vocês.
         Márcia e Mônica entreolhavam-se com cara de nojo.
         - Não, pai. Faz com um coador.
         - Porque vocês acham que ele tem um gosto bom?
         As irmãs, apesar de crianças, tinham se acostumado com as brincadeiras de mau gosto do pai. Certa vez, os três passeando pelos arredores de sua casa, aproveitaram da ausência de um vizinho fazendeiro e pularam na sua horta para subir no pé de pêssego.
         - Psiu, - repreendeu seu Antônio, - fiquem caladas. Eu vou trepar e pegar os maduros na ponta do pé. Vocês fiquem aqui embaixo pegando e colocando no saco.
         Elas se calaram imediatamente.
Escutava-se o barulho dos grilos e daquela chuva fininha que caía, deixando o pé de pêssego mais escorregadio.
         - Fiquem aí, vou jogá-los.
         Seu Antônio jogava as frutas longe do pé, fazendo as meninas correrem para recolher. Márcia, às escondidas, comeu um virada de costas para Mônica e para o pai, um expert em roubar pêssegos.
         - Deixa pra comer em casa. Não adianta comer escondido porque eu vejo tudo o que você faz.
         Márcia fez um “hum” tristonha. Acabou de comer o resto mas não se propôs a comer mais. Acima do medo, ela respeitava de todo o coração seu querido pai.
         - Lá vai mais. – seu Antônio gritou, jogando um bem longe, só para ver as pequenas correrem e molharem as pernas com as gotas de chuva nas gramas.
         Bem perto do fruto, as meninas ouviram um “TUM”, seco, às suas costas, como uma madeira reta estivesse caindo no chão.
         Elas se viraram rapidamente e viram seu Antônio estirado no chão, com uma mão sobre a barriga e a outra do lado do corpo, com as pernas retas e o rosto virado para o pé de pêssego, com os olhos fechados.
         - Pai, – gritou Mônica – o senhor está bem?
         Ele não respondeu, deixando Márcia preocupada.
         As duas correram até ele, jogando o saco de frutas no meio da horta, enxugando as gotas de chuva que lhe corriam sobre os olhos.
         - Papai, responde – disse Márcia – o senhor caiu? Responde.
         Silêncio.
         - Tô achando que ele morreu. – disse Márcia calmamente, sacudindo o corpo mole de seu Antônio, todo molhado.
         - Pai, responde – suplicou Mônica, aos gritos – não morre agora, pai. Pai...
         Márcia tentava ressuscitar seu Antônio às sacudidas. Mônica berrava ajoelhada aos pés do corpo, pensando como iria deixar o pai morto na horta do fazendeiro.
         Com apenas oito anos, Márcia o agarrara pelas axilas e foi o arrastando para a cerca, onde pularam para roubas as frutas. Suspirando com dificuldades, Márcia não recebera ajuda da Mônica, no qual só chorava desesperada.
         - Aí não. Tenho cócegas no sovaco – ria seu Antônio, dando o maior susto nas filhas, ainda deitado e de olhos bem fechados.
         - Pai, o senhor está vivo -  bateu palmas de alegria Mônica, abraçando-o, ele todo sujo de barro.
         Márcia o olhou bem sério e não hesitou:
         - Isso é coisa que se faça? Quase matou a gente de susto...
         Seu Antônio sorriu mostrando os dentes amarelados e beijou a testa da menina.
-         Perdi a força dos braços e caí.
As duas só entenderam as brincadeiras sérias do pai depois de adultas, quando um dos seus tios lhe contaram sua péssima mania em não confessar seus erros, sempre botando culpa em alguma coisa.
Ele gostava muito de contar histórias. Seu Antônio tinha um talento nato de inventar contos de última hora, principalmente aqueles de terror, assustando suas filhas e suas amigas. Ele vivia rodeado de crianças e adultos, principalmente aos sábados, junto a uma fogueira, em frente à sua casa. Os adultos achavam graça na capacidade do velho em inventar tantas narrativas em tão pouco tempo. Eles levavam seus filhos e aproveitavam para por as conversas com os outros amigos em dia, pais das outras crianças que levavam seus filhos para as historietas de seu Antônio. Sua casa aos fins de semana poderia ser considerada um teatro ao céu aberto, com uma fogueira ao lado, o velho em frente às crianças e os adultos no fundo, conversando entre si e de vez em quando parando, para ouvir aos trechos as histórias surreais.
- Quando eu tinha a idade de vocês – seu Antônio contava, com os olhos bem abertos, apontando o dedo indicador para todos os pequeninos sentados no chão – tinha aqui na cidade uma linha de trem abandonada. De vez em quando aparecia por lá alguns mendigos... Alguém aí sabe o que é mendigo? – perguntava ele, só para ter certeza da atenção da criançada.
- É uma pessoa muito pobre que não tem casa e passa muita fome – respondeu um menino desdentado bem no fundo, com a mão levantada para chamar a atenção do velho e de seus amigos.
- Muito bem, - completou seu Antônio – muito inteligente você. Aparecia por lá alguns mendigos para dormir na estação abandonada. Um deles uma vez me contou – parou para pensar no que falar, com a mão no queixo, pensativo - ... eu ainda era criança e tinha medo dos mendigos. Eles tinham uma barba grande e suja. Cheirava mal...
         Um “ARGHHHHH” em conjunto tomou conta da escuridão da casa. Márcia e Mônica riam com a mão na boca. Elas sempre eram as que ficavam na frente pra ouvir as histórias do pai.
- Eles me contavam que ouviam vozes pedindo ajuda na estação abandonada. Eles me contavam quando eu passava por essa estrada – e apontou o caminho de terra defronte sua casa – para ajudar meu pai no serviço da roça. Os mendigos fugiam, com medo.
- Que ajuda eles pediam? Queriam comida? – perguntou uma garota de cabelos castanhos e olhos salientes, bem no canto direito de seu Antônio.
         - Não, querida. Almas penadas não sentem fome.
- Como eles sabiam que eram almas penadas? – perguntou Márcia, sobressaltada.
O velho a encarou e explicou com uma tranqüilidade de quem não é pego de surpresa.
- Porque eles não viam de onde vinham as vozes. Elas vinham do céu.
Agora um “OHHHH” desafinado tomava conta do terreno. Os adultos se surpreenderam com a atenção das crianças e pararam de conversar entre si, prestando atenção à história.
- Um mendigo veio de muito longe e me falou da noite que passou lá. Estava ele bem andando por essas bandas, mas estava muito cansado e a noite tinha chegado. Como a estação estava abandonada, ele foi para lá e despejou suas trouxas num canto, dormindo logo em seguida. Mas pelo menos era isso o desejado...
Outra mão no meio das quinze crianças se levantou.
- Onde fica a linha de trem?
Seu Antônio, para não perder o raciocínio da história, respondeu rápido sem ao menos se dar ao trabalho de ver quem perguntava.
- Ela não existe mais. O governo tirou. – disse ele, ríspido. - O mendigo... Não conseguia dormir, ouvindo vozes, pedindo ajuda: “Me ajude, me ajude”. Foi desse jeito que ele saiu correndo de lá, sem ao menos conseguir cochilar. Todos os moradores vizinhos da antiga estação falavam das pessoas saindo correndo de lá.
Mônica, curiosa mas perspicaz com as histórias do pai, questionou:
- Os vizinhos também ouviam as vozes?
- Nãoooo!!!!! – respondeu ele sonoramente – Somente quem ia à estação para dormir. A alma era dona do lugar e afugentava todos dali.
- O senhor já dormiu lá? – uma menina, a mais nova de todas, com uns sete anos, perguntou toda interessada pela história. Sempre gostava das histórias de fantasmas do pai e as do seu Antônio para ela simplesmente eram as melhores. Seu pai se esforçava para fazer com igual criatividade as histórias do velho quando não podia levá-la, mas todo o esforço era vão.
- Nunca. Sempre tive medo das histórias dos mendigos. Sempre respeitei os mais velhos e eles falavam pra nunca ir lá. Só um menino desobedeceu o pai uma vez e se deu mal. – seu Antônio cochichou, como se não quisesse que sua voz fosse ouvida pelos adultos – o menino ficou doido. Foi parar no hospital para doidos.
Todas as crianças colocaram a mão na boca, assustadas.
- Não desobedeçam seus pais, porque vocês podem acabar como esse menino. Internados e loucos, sozinhos no hospital.
A garota mais nova começou a chorar. Um menino do outro lado começara a inspirar ofegantemente, querendo também cair em prantos.
Seu Antônio, descontrolado e com a habilidade da conversa, tentou tomar o controle da situação
- Não, criançada. Ninguém aqui vai ficar doido e sozinho no hospital. Eu conheço todos vocês e os seus pais sabem o quanto vocês são obedientes.
Ele tentava contornar o susto dado nas crianças. Umas se acalmaram, mas a mais jovem de todas não estancou o choro. Seu pai veio correndo, lançou um olhar rápido com as sobrancelhas franzidas para seu Antônio, colocou-a no colo e saiu apressado.
O velho sabia muito bem o que significava aquele olhar. Queria terminar rápido a história.
- Bem... – continuou ele, tendo muito custo para voltar a concentração. Tinha ido longe demais com o recado para as crianças – o menino nunca obedeceu aos seus pais. Não escovava os dentes, dormia tarde, chupava manga e depois tomava leite...
Os pais, que antes queriam tirar seus filhos dali também pois seu Antônio as assustara muito, perceberam o porque do susto. Ele, na verdade, estava educando de maneira indireta a infância sofrida daquela época. Todos muito pobres não tinham uma educação adequada. Moravam longe das escolas e a estrada era muito ruim, impossibilitando em dias de muita chuva o transporte escolar chegar por aquelas bandas. A educação não era passada através de xingos ou de palmadas, e sim através de histórias.
- Um dia, ele quis lá enfrentar o fantasma. O pai dele avisou: não vai porque é perigoso! Ele respondeu: fantasma não existe. É tudo mentira.
Outro garoto levantou o braço. Os pais agora estavam atentos a cada palavra de seu Antônio. Se ele falasse qualquer outra coisa assustadora, eles tirariam todas as crianças dali. E o velho percebia isso. Com muito cuidado, escolhia as palavras para dizer. Não queria ser afastado dos garotos. Estar rodeado deles era sua alegria, isso era o satisfazia plenamente. Nunca se sentia daquele jeito, tão querido e tão solicitado durante muito tempo após a morte de sua amada esposa. Ela o completava em tudo. Agora eram suas filhas e todas as crianças das redondezas que preenchia o buraco em seu coração.
- Quem te contou isso?
Não precisou pensar muito para responder.
- O meu tio. Esse menino era neto dele, pequenino assim como vocês. Depois disso ele nunca mais desobedeceu aos seus pais.
- O que aconteceu? – agora era a vez de Márcia, toda curiosa, perguntar.
- O menino foi lá à noite, sem avisar seus pais. Era quase meia-noite e sua casa estava silenciosa. Ele saiu pé por pé – suas palavras ficavam mais vagarosas – e foi até na estação. Entrou em toda aquela escuridão e se sentou lá, esperando alguma coisa acontecer.
- Ele ouviu a alma? – uma criança perguntou. Seu Antônio estava sereno, pensativo, como se ele mesmo estivesse na estação, para poder transmitir toda a adrenalina para a garotada.
- Ele dormiu um pouco. Acordou muito assustado com a voz chamando: “Me ajude, me ajude”. O menino quase correu de tanto susto, mas ficou, tomou coragem e conversou com a alma...
Os olhos da criançada estavam vidrados e brilhantes no semblante do velho. Os adultos também se interessaram pela história, curiosos e admirados com o poder de sedução do seu Antônio, aquele homem respeitável e amigo. Estavam boquiabertos com sua imaginação e capacidade de narrativa. “Esse velho realmente é inteligente, do jeito que as crianças sempre falam. É cada história inventada... Onde já se viu? Aqui nunca teve linha de trem...”
Apesar de serem mentiras, desde as histórias como os lugares, eles, como os seus filhos, se convenciam delas pela convicção e rigidez do seu Antônio ao narrar tudo de uma maneira simples e pontual. As histórias não passavam de meia a uma hora de duração. Quando os pais autorizavam e queriam seus filhos aos cuidados do velho, as histórias duravam mais tempo. Tudo era questão de disponibilidade tanto dele quanto dos pais. Com mais ou menos minutos, histórias sempre saíam da cabeça de seu Antônio, tanto encantando quanto assustando as crianças.
- Ele falou para a alma, olhando para o teto da estação: “Te ajudo. O que você quer?” Ela respondeu: “quero sua ajuda”. O menino falou novamente: “que ajuda?” A criança começou ouvir umas coisas caindo no chão bem ao seu lado, um som parecido com tijolos, bem pesados. Ele não via porque estava muito escuro. Abriu a porta velha da estação pra deixar a luz da lua entrar e gritou muito alto, acordando todos os moradores dali.
Ouviu-se um grilo cantando. Seu Antônio fez um silêncio triunfante com a vitória sobre todos dali. Eles eram seus espectadores atenciosos e integrantes da história, aguardando ansiosos pela continuação.
E, pela surpresa de todos, tanto do velho quanto das crianças, um adulto levantou o braço.
- O que ele viu? – perguntou uma mulher de meia idade, usando um vestido xadrez verde e preto, de cabelos loiros com algumas mechas brancas. Percebia-se o seu envolvimento com a história pelo tom da pergunta.
Seu Antônio a olhou sorridente e se virou para as crianças, gesticulando com as mãos para baixo, com os dedos esticados.
- Viu pedaços de gente no chão. Viu uma perna, uma mão e uma cabeça rindo para ele. Saiu correndo e gritando, pedindo socorro. Um dos vizinhos perguntou o que tinha acontecido e ele respondeu que tinha visto os pedaços do fantasma no chão. Todo mundo correu lá pra ver mas ninguém viu nada.
Um dos adultos lhe acenou, apontando o indicador para o pulso. Estava na hora de levar as crianças para dormir.
- ... depois ele ficou com muito medo e jurou nunca mais desobedecer aos pais. Depois de muito tempo descobriram que a alma era de um mendigo morador da estação. Ele bebia muito e dormiu na linha do trem, sendo atropelado e o corpo todo partido em pedaços. Seu corpo estava soterrado e queria ser descoberto pra poder ir para o céu. Aqui acaba a história e semana que vem tem mais. Tchauzinho e um beijo para todos vocês.
Só dizer adeus não bastava. As crianças tinham um carinho enorme pelo seu Antônio. Fizeram uma fila indiana, desorganizada, para poder beija-lo e abraça-lo. Era bom contar histórias só para ter aquele momento de afeição, com tantas crianças com sentimentos sinceros. Era essa sinceridade infantil que lhe dava vontade de viver.
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         Seu Antônio, graças à pequena prefeitura municipal, conseguiu escapar dos dois enfartes nos dois anos consecutivos. Fora socorrido às pressas e sofrido duas cirurgias nas veias coronárias. Se recuperou bem delas. Tanto na primeira quanto na segunda operação, ele não se fixava na doença e conseguiu se sair bem, saindo bem preparado psicologicamente, não atraindo para si daquelas doenças que só a mente doente pode trazer.
Mas a falta de cuidados dele instigou à terceira  cirurgia. E dessa vez, não fora uma simples operação. Três veias entupidas e quinze dias no CTI lhe custaram para retornar à Hulha Negra e seguir uma vida com regras. Ele não se sentiu muito à vontade. “Estou velho, na hora mesmo de partir. Não vai ser agora que vou deixar de aproveitar a vida”.
         Ele nunca teve maus hábitos alimentares. Aliás, suas condições financeiras nem lhe permitiam comprar muitos alimentos inadequados para quem opera o coração três vezes. Seu Antônio não mudou sua rotina devido às caminhadas longas feitas durante todos os dias e o esforço feito nos trabalhos cotidianos. O médico recomendara repouso absoluto, mas ele balançara negativamente a cabeça, mostrando para o médico e para os familiares sua total indiferença para com a morte.
Ficou feliz em ver o casamento das filhas. Elas se mudaram e ele ficou só, perambulando como uma alma penada na casa, ouvindo rádio de vez em quando e admirando o céu nos fins de tarde.
Aos fins de semana encontrava-se com as filhas e genros na matriz para as missas matinais dos domingos. Essa tradição perdurou pouco até o pastor local conseguir convencer Márcia das “contradições” entre a Igreja Católica e a Bíblia, tornando-a mais uma de suas ovelhas desgarradas. Seu Antônio não entendia aquilo. A missa era tão sagrada que qualquer diferença a partir de sua visão era uma afronta a Deus. Não disfarçava o desgosto ao ver sua menina andar com a Bíblia debaixo do braço, apesar de nunca lhe falar nada. Márcia sabia que seu pai carregara para o túmulo esse desgosto, mas acreditava que do outro lado Deus o convenceria e ele a perdoaria.
Todas as tristezas da solitude se desvaneceu com o nascimento dos netos. Seu Antônio adorava ser rodeado pelos pirralhos pendurados em seu pescoço enrugado e cheio de dores, agarrando-lhe pelas pernas duras. A bajulação dos netos fazia com que as dores sumissem, fazendo-o sorrir, xingar, contar casos, cozinhar e até brincar de pipas.
O nascimento de Natan não foi um caso diferente de todos os outros. Ele era querido e adorado pelo avô. Ele também era um dos que agarravam em suas pernas e em seu pescoço. O amor do velho era incondicional e não media diferença entre todos eles. Viver na solidão e na tristeza fizera-o um homem incapaz de selecionar o neto mais afetuoso e brincalhão. Já estava cansado e preferia morrer como as crianças.
         Seu Antônio percebia a fragilidade de Natan perante os outros netos. Ficava doente com mais freqüência e era mais distraído, não obstante o mais apegado e carinhoso dentre todos os outros.
         - Márcia – dizia ele – esse menino precisa de cuidados, filha. Ele vive gripado. Olha só os espirros dele.
         Em tempos o menino tossia muito. Eram precisos cuidados hospitalares a miúdo. Os chás da casa de seu Antônio já não faziam efeito e ele se preocupava muito, esquecendo-se dos outros netos que precisavam também de sua atenção. Isso não era bem visto por Mônica, que às vezes liberava em ímpetos escandalosos suas crises de ciúme:
         - Se fossem os meus filhos o senhor nem ligava!!!
         Seu Antônio a olhava triste e indagava:
         - Não é verdade, querida. Seus filhos foram mais abençoados que Natan, só isso. Ele merece mais atenção porque é mais doente. Isso não é hora para essas crises infantis.
         Mônica, no fundo, entendia. Tinha ciúmes, mas compreendia tudo por seu amor à irmã.
Tantos os sentimentos quanto as manifestações de amor e ódio dela caminhavam juntos e tanto seu Antônio quanto Márcia não se importavam com os devaneios de Mônica, sempre levando em consideração o sangue da família que lhe corria nas veias. Era preciso paciência com ela.
         O velho morrera na cama, aos oitenta anos. Dera o quarto infarto e morrera em silêncio, talvez sem dores. Não foi possível ter certeza disso.
         Natan o descobriu imóvel na cama e tentou chamá-lo. Sacudiu-o umas três vezes mas sem resposta. Chamou a mãe, dizendo que o vô não queria acordar.
         Pensando ser umas daquelas brincadeiras antigas do seu pai, ela falou na porta do quarto:
         - Pai, todos os seus netos estão aqui, esperando. Tá cansado?
         Ele não se mexera, assim como não respondeu.
         - Vamos, pai. O senhor não vai me enganar.
         Foi até ele e o sacudiu. Seu braço moveu-se como uma gelatina.
         - Pai?
         Ela o virou para cima. Natan não deixou de perceber o aspecto cadavérico do seu avô: ela estava lívido, com a boca aberta e lábios roxos.
         - MÔNICA – gritou Márcia – venha cá. Eu acho que nosso pai não está bem.
         Natan estava chorando muito, no canto do quarto. Ele encarava o vô. Ele estava com uma aparência horrível, bem parecida com aquelas múmia dos filmes que assistia. Seu vô nunca mais contaria histórias e sorriria para ele.


        
             

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