Discussão Dorense

Discussão Dorense

quinta-feira, 18 de abril de 2013

O EXORCISMO DE NATAN - capitulo 5

            “Estamos aqui no Cemitério da Irmandade Arcanjo São Miguel e Almas para noticiar a morte de um bebê pré-maturo, possivelmente assassinado por uma criança com problemas mentais, ocorrido hoje, dia 07, ás seis horas da manhã, no Grupo Hospitalar Conceição. Segundo informações do hospital, a criança havia conseguido entrar na sala das incubadoras sem ser notado e pegado um bebê pré-maturo, soltando-o de cabeça no chão, depois da tentativa das enfermeiras de salvá-lo, fazendo que o recém-nascido não conseguisse resistir aos ferimentos. A mãe, adolescente, Josélia Ferreira Silva culpa o hospital por não deixa-la entrar na sala e quer justiça quanto à morte de seu filho”.
            (Mãe desesperada, chorando, e com lábios trêmulos): A culpa maior são dos médicos. Eu poderia ter entrado e tirado meu filho, ele estaria no meu colo nesse momento. Não entendo porque isso foi acontecer comigo... Nada vai trazer meu filho de volta. Eu exijo que aquele doido assassino de bebês fique internado o resto da vida. Não me importa se ele é criança, se é de menor. Quero que a justiça seja feita. Lugar de retardado é no hospício. ELE MATOU O MEU FILHO!”
            CÂMERA VOLTA PARA O JORNALISTA: “Aqui fala Carlos Alberto do Cemitério da Irmandade Arcanjo São Miguel e Almas, para o jornal Bom dia Porto Alegre.”
            Apesar da notícia, a capital gaúcha seguia com seu frenesi, com o barulho dos carros e empresas. Adolescentes sorriam na pracinha, os idosos jogavam baralho nos cafés.  Enfim, era mais uma notícia em meio de muitas.
“O garoto que matou o bebê encontra-se internado no hospital psiquiátrico São Pedro, onde está sedado por sair muito agitado do Grupo Hospitalar, aos cuidados dos médicos e enfermeiros. Está isolado numa sala por ser considerado de extrema periculosidade”.
            O jornalista dos estúdios assim finalizava a transmissão daquela manhã. 
            O calor incomodava Márcia na cama. O suor escorria-lhe pelo rosto, indo até o busto, provocando-lhe uma pequena coceira, fazendo-a levar a mão todo momento entre os seios.
            Deram-lhe um remédio muito forte para dormir. Deitada nos bancos de espera do hospital, Márcia se levantou custosa, com as mãos nas costas, pegando o travesseiro e percebendo que apagara por várias horas, tamanha a umidade do poliéster.
            Tonta e com dor de cabeça, dirigiu-se para a recepção.
            - Em qual quarto se encontra meu filho?
            A atendente, educada e muita bem vestida, arrumou os cabelos bem cuidados e negros atrás da orelha, a fitou superficialmente:
             - Qual o nome da senhora, por favor?
            -  Márcia da Conceição Campos.
            Ela correu o dedo pelo livro de registros e parou numa linha bem abaixo da página.
            - Natan Romualdo Campos?
            - Sim.
            - Ele está no quarto trinta e dois. Mas o médico quer conversar com a senhora primeiro, deixe-me ligar para ele.
            Desconcertada, com a mente toda embaralhada pelos efeitos do remédio, sentiu sede. Márcia foi ao bebedouro ali perto e tomou água. Um gosto amargo desceu-lhe pela garganta, fazendo-a tossir forçosamente. Parecia ter acordado de um pesadelo, daqueles de infância, quando tinha medo de velórios e defuntos. A realidade tinha de ser um pesadelo, pois só assim seria possível continuar caminhando com a vida.
             - Senhora, me acompanhe, por favor. – disse o médico, voltando da sala de exames.
Ela sentia muitas dores nas costas por dormir no banco, por isso sentia dificuldades em andar. Foi caminhando lentamente, descompassada, e de quando em vez apoiava-se na parede, sentindo-se aflita ao imaginar-se caída.
            - Venha, ele está aqui.
            Em um quarto sombrio, Natan dormia todo amarrado com tiras de couro escuras acopladas à fivelas oxidadas.
            - Foi o melhor que conseguimos. Ele estava muito nervoso, tivemos de amarrá-lo senão ele nos machucaria e também machucaria a si mesmo. Demos a ele tranqüilizantes e desde que chegou, ele dorme profundamente. O doutor... – ele folheou algumas guias em sua mão - ... Dionísio solicitou alguns exames da massa encefálica, assim que ele estiver acordado começaremos a realizar os exames. Providenciaremos um quarto para que possa ficar, mas nem toda hora você poderá vir aqui. Daqui a dez minutos estarei de volta.
            Seu coração de mãe estava consumado pela tristeza. Como lhe fazia falta seu esposo falecido, um homem sensível que a confortava e lhe trazia o máximo de conforto. Estava sozinha agora consigo mesma, se pode dizer assim, porque ela mesma também não se encontrava. O que pensar do episódio do bebê? Como ele estaria agora e sua mãe? Será se ela estaria com o neném no CTI, ou...
            - Não, ele vai se recuperar. Jesus vai curá-lo. – Márcia pensara consigo mesma.
            Havia se esquecido de Deus. Todo aquele mundo distinto em que ela se metera nos últimos dias a havia se esquecido do Criador e de seu eterno amor para com seus filhos. Ela não havia sido esquecido por Ele, disso ela tinha  plena certeza. Com Jesus tudo se acertaria. Bastava ter fé e pedir. Pedir... Pedir...
            - Senhor, meu filho está doente e está muito mal mesmo. Cure-o, Senhor. Ele é apenas uma criança. Não deixe se abater sobre ele os meus pecados do passado, não deixe que ele seja acometido por tantos infortúnios como os de Jó. Ele não merece. Ele é apenas uma criança. Proteja-o, Senhor Jesus, meu Senhor Deus, estou lhe suplicando. Quero que ele fique curado de tudo isso, me mande meu Natan de volta. Olhe só para ele... Ele está amarrado como um animal selvagem e ele é tão bom, um filho tão amável... Ele não merece isso, meu Deus, não merece...
            A oração feita aos pés da cama fora interrompida por passos ao fundo escuro do quarto. A luz era fraca e a penumbra tampava alguns centímetros do chão pela janela adentro, dando-se a entender a falta de luz dos postes públicos. Alguma coisa se movia, parecendo propriamente uma pessoa parada bem ao lado da escuridão do fundo do quarto.
            - Doutor, é você?
            A sombra não se movera e pelo colarinho amassado bem justo no pescoço, percebia-se que estava de costas.
            - Doutor?
            Ela continuava imóvel.
            - Como você o deixou ficar assim, Márcia? Como o deixou tão doente, a ponto dele ser amarrado como um cachorro mau-educado?
            Um frio correu-lhe pela espinha. A voz não poderia ser de quem ela pensava, aquela voz rouca e as palavras corridas. A voz do homem de sua vida.
            - Só porque eu me fui você descuida assim de nosso filho?
            Ela se levantou, caminhou para trás até a porta do quarto e mencionou um nome que não pensava em falar nessas circunstâncias:
            - Marlon? É mesmo você?
            Márcia queria desmaiar. Suas pernas foram perdendo a firmeza, suas vistas foram escurecendo e somadas a isso uma náusea tomou-lhe de imediato.
            Não conseguindo se segurar, ajoelhou-se no chão, mas manteve-se sua consciência bem alerta. Teve medo daquela voz.
            - Por que, Márcia?
            Por um instante, a sombra caminhou até ao leito de Natan, mas desaparecera ao tomar a luz.
            “Estou completamente louca”, pensou ela. “Estou vendo e ouvindo coisas. Preciso me segurar porque Natan precisa de sua mãe. Não quero estar fragilizada diante de tudo que tá acontecendo. Preciso estar firme.”
            - Senhora, senhora! Acorde!
            Márcia abriu os olhos lentamente. Os policiais foram bem educados ao acorda-la ao lado da cama de Natan. Eles não queriam despertá-lo e a acordaram, falando bem perto de seu ouvido. O garoto estava amarrado à cama, muito bem sedado e dormia profundamente. Mesmo que quisessem, não conseguiriam acordá-lo.
            - Precisamos conversar sobre o seu filho agora.
            Márcia olhou para todos os lados do quarto. Ao olhar pela janela e ver o sol se pondo, fazendo com que a luz se direcionasse para a porta do quarto iluminando diretamente o rosto franzino do enfermeiro, ela notou o peso de suas pálpebras e concluiu que tudo não passara de um pesadelo.
            Esfregando os olhos e se pondo de pé, ela encarou o policial firmemente:
            - Agora? Não vê que nós estamos passando por uma fase ruim? Não está vendo meu filho doente na cama?
            - Senhora, não podemos aguardar. Temos algumas perguntas e tudo terminará bem. Não será demorado.
            Com o enfermeiro na porta, logo o psiquiatra entrou na sala e analisou a ficha de Natan. Vendo os dois policiais e Márcia conversando, ele os interrogou, autoritário:
-          Por que estão aqui?
-          Senhor, estamos investigando um assassinato.
- Mesmo que estejam investigando, não podem simplesmente chegar e fazer um interrogatório. O hospital tem um procedimento e precisa ser levado a sério.
- Doutor...
- Vocês nem sabem se o paciente tem condições de atender.
- Mas tivemos autorização do diretor.
- Muito bem. Deixe-me vê-la.
Os policiais se entreolharam, vexados.
- Foi o que pensei – disse o médico – Vamos até à diretoria primeiramente. Depois de liberados, vocês continuam com a investigação.
Havia ali uma TV pequena, quatorze polegadas, em cima do guarda-roupas do quarto.
O desenho do canal selecionado estava mudo. Márcia olhou-a sem muita atenção, ainda se localizando no local depois de dormir, dando voltas pelo quarto e atenta a todos os pequenos movimentos de Natan.
            Sentando-se novamente ao lado do filho, aumentou o volume da TV um pouco e trocou de canal.
            JORNALISTA: “Confirmado ontem a morte de um bebê pré-maturo no Centro Hospitalar Conceição.  Segundo informações, um garoto com problemas mentais invadiu a sala das incubadoras, que o pegou e o soltou no chão, não dando oportunidade para as enfermeiras de pegá-lo”.
            ENFERMEIRA: “Foi tudo muito rápido. Ele estava com o neném no colo e mais duas colegas minha estavam tentando agarrá-lo. Mas estávamos com tanta atenção que nos assustamos com os gritos do lado de fora e ficamos nervosas com o choro dos outros bebês. Pulamos em cima dele e o bebê foi solto. Uma tragédia... Nunca vi uma coisa assim...”.
            JORNALISTA: Temos informações que o garoto está internado no hospital psiquiátrico São Pedro sob atenção especial e a polícia já está investigando o caso.
            Será se não havia outra alternativa senão chorar para Márcia? Aquilo era demais. Uma criança matar outra criança e o pior de tudo: seu filho matara. Estava perdendo aos poucos a esperança, a fé, Deus. Um buraco negro a devorava pouco a pouco; as imagens da TV lhe perturbavam, afogando-a num rio agitado. Morte, doença, assassinato: tudo interligava-se em torno de si, como se todos os males do mundo acumulassem e fossem recolhidos, despejando sobre sua cabeça todas as conseqüências de todas as más e boas escolhas (nem todas as boas escolhas trazem bons resultados), fazendo-a carregar o karma do trajeto universal, traçado entre aquilo que é mau e aquilo que é bom. Márcia levava uma vida justa, honrada. Marlon sempre fora um homem trabalhador e tanto o histórico de seu marido como o seu não trazia a genética de familiares com problemas mentais e muito menos alguns de seus tiveram passagem na polícia por quaisquer problemas que fossem. Ainda não entendia como isso tudo poderia estar se sucedendo. Natan era apenas uma criança, que gostava de jogar vídeo game e brincar de pega.
            Os dois policiais entraram no quarto acompanhado pelo médico. 
            - Senhora, acompanhe os senhores até a sala três para um pequena conversa. Eu expliquei a situação para os policiais e garanto que eles não a incomodarão.
            Márcia consentiu com a cabeça e os acompanhou até o terceiro andar, numa enfermaria desativada, apesar de ter ali ainda uma mesa empoeirada e duas cadeiras com as pernas bambas.
            - Sente-se senhora. Por que seu filho... – enfiou a ponta dos dedos no bolso da camisa e puxou um pequeno bloco de papel reciclado - ... Natan, fez aquilo com o bebê?
             Márcia apoiou a cabeça sobre as duas  mãos e refletiu. Tinha certeza que uma doença estava mexendo com Natan, mas escondia o máximo aquilo, até para si mesmo. Talvez aquele interrogatório faria bem para si. Serviria como uma sessão terapêutica, fazendo seus sentimentos se exteriorizassem, podendo, no desabafo, fazer suas aflições sumirem.
            - Ele tem tido uns comportamentos estranhos. Ele machucou a cabeça depois de ter desmaiado, mas como ele não tem estado bem, eu o trouxe para a capital.
            - De onde vocês  são?
- Hulha Negra.
- Ele fez alguma coisa parecida assim na sua casa?
- Não em minha casa. Ele matou uma galinha na casa da minha irmã, provocando medo nos meus sobrinhos. Ele nunca tinha feito isso. Ele só tem nove anos...
            O policial de pé, encostado à porta fechada, também questionou.
- Você faz idéia do porque desse comportamento?
- Não. – respondeu ríspida - Ele cortou a cabeça da galinha com uma faca e anda tendo um comportamento estranho. Ele tem sido mal-educado, falado palavrões e dito coisas de adultos...
- Coisas de adultos?
- Como uma criança de nove anos pode chamar uma mulher de prostituta? E ainda mais com a minha irmã!
- Ele pode ter visto na televisão em algum filme, ou talvez até na internet.
            - Escute aqui, meu senhor. – exaltou-se ela, inclinando sobre a mesa e olhando bem fundo nos olhos do sargento – sou evangélica, regulo a programação da TV assim quanto o conteúdo da internet do meu filho. Ele é uma pessoa educada e vive bem sua infância. Vivia, até agora... – completou, voltando-se com os olhos cabisbaixos calmamente para a cadeira.
            Os policiais sentiram-se incomodados com a pouca ventilação daquele local e o que estava próximo à porta, abriu-a, fazendo ranger um pouco, deixando somente uma fresta para o ar correr brandamente.
            Todas os casos investigados feitos por aquele departamento eram, enfim, rotineiros. Todas as mães choravam por seus filhos assassinos e traficantes. Para elas, os “bebês” nunca faziam nada e sempre eram inocentes de tudo. Isso causava até nojo em certos guardas
Quase todas os casos eram arquivados naquele departamento, com exceção daqueles pressionados pela mídia, sejam acontecidos com cidadãos famosos ou com aqueles em que os jornais cismavam de fazer a justiça acontecer, como nos casos de Isabella Nardoni. Sempre é assim: a justiça se faz para cinco e arquiva duzentos.
            O quinto departamento gaúcho da Polícia Civil estava prontificado a solucionar o caso do bebê assassinado. Sim, ele queria a exceção para esse caso e taxá-lo de caso horrendo, causando um impacto positivo para a cidade e para o país, causando um sensacionalismo favorável à polícia gaúcha e principalmente, para a mídia. Seria melhor eles trabalharem bastante para a resolução. Os jornais estaduais tanto como os nacionais começavam a se instalar frente à delegacia e queriam uma posição do caso.
            O sargento achou viável tomar frente, chamando somente um soldado raso para lhe acompanhar até ao hospital e interrogar a mãe do menino.
            Sargento Vieira não encontrou dificuldades em passar pela portaria, acompanhado pelo policial Silva . Esse andava todo desinibido e autoritário e seu superior preocupava-se somente em matar sua sede
             Passando diretamente pela atendente e ignorando totalmente sua presença, teve de suportar o orgulho de ser autoridade ao ser retido na portaria pela funcionária..
- Em que posso ajuda-lo, policial?
            -Precisamos entrar para um interrogatório. – respondeu Santos, friamente.
Vieira estava mais à frente, no bebedouro, tomando água e jogando um pouco no rosto, sentindo as gotas geladas escorrerem pelas bochechas murchas.
            -Sargento, a atendente. – chamou Santos, apoiado no balcão
            Ele voltou, com o som do eco do par de coturnos de couro legítimo ressoando pelos corredores.
            - Pois não?
            - Em que posso ser útil ao policial?
            - Estou a trabalho e preciso encontrar um paciente, URGENTEMENTE.
            - Tem a autorização da diretoria?
            - A justiça não precisa de autorização de ninguém. Poderia me informar o quarto de... – puxou o pequeno bloco no bolso do jaleco – Natan Romualdo Campos?
            - Mas... São as normas...
            Vieira se virou para Santos, inspirando profundamente o ar do hospital. O cheiro de alvejante misturado a outros produtos entrava pelas suas narinas
            - Se quiser me acompanhar, podemos ir até à delegacia para fazermos a ocorrência. Assim, qualquer problema a culpa será do hospital e o seu emprego irá por água abaixo. Você é quem decide.
            A pobre moça, nervosa, tremia a mão a cada página virada dos registros dos quartos. Precisava daquele emprego mais do que nunca. Sua mãe sofria de Mal de Alzheimer e a aposentadoria dela mal cobria os custos dos remédios. Com o salário médio recebido ali, ajudava em casa com os mantimentos, luz e água. Quase não lhe sobrava nada, vivendo com dificuldades. Às vezes era possível fazer feira quando não precisava completar os custos dos remédios da mãe, sendo que bimensalmente recebia ajuda de uma cesta básica da Maçonaria.
            - Quarto quarenta e dois. Segundo andar, à direita.
            A atendente, nervosa, pensando na mãe doente e em todas as dificuldades que passava, entrou no banheiro às pressas para chorar em frente ao espelho, limpando com um pequeno pedaço de papel higiênico a maquiagem borrada.
           
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Márcia tinha uma televisão LED quarenta polegadas e também TV por assinatura. Os canais impróprios para Natan eram bloqueados com senha, assim como o computador, fazendo com que qualquer site com conteúdo inadequado para crianças não fossem acessíveis.
            - Pode ter ouvido na escola, com os amigos. Ele pode ter procurado saber o significado e guardado a palavra.
            Indignada com a desconfiança do sargento, Márcia não suportava mais o interrogatório.
            - Ele foi muito bem educado e não falaria uma barbaridade dessa com a sua tia. – ela coçou a cabeça, fazendo um emaranhado nos cabelos, - ele está doente e precisa de um tratamento. Ele está muito mal, muito doente. Duvido que ele teve consciência de seus atos.
            Vieira sabia muito bem se fixar nos olhos do interrogado e conhecer verdade e mentira através de seu brilho. Vinte anos correndo atrás de viciados, ladrões e assassinos trouxera uma experiência bem ativa, fazendo-o com que ele confiasse em seus instintos para colaborar nas soluções em problemas dessa natureza.
Mas de um ímpeto, duvidou. Recordara-se do caso de Zé Maria, um sem-teto, acusado de matar queimado um companheiro de rua. Como tinha problemas mentais, fora internado nesse mesmo hospital e se defendia, dizendo que seu companheiro morreu queimado com o cigarro aceso sobre o colchão de espuma. Na perícia, perceberam o cheiro de álcool e sinais de luta, como machucados nas pernas e na barriga. Zé Maria foi  preso numa cadeia para loucos assassinos até suicidar, pondo fogo em seu colchão, por ironia do destino.
Vieira enxergara a verdade nos olhos do sem-teto. Concluiu a veracidade do caso, afinal não havia fatos para provar o contrário, até o corpo queimado chegar à perícia e liberarem o laudo para seu departamento. Desde então concluíra não existir verdade e mentira na loucura, apenas um mundo alternativo onde tudo podia, não havendo culpa nem arrependimento.
            Era óbvio a sanidade daquela mulher, apesar da transparência acusar uma tristeza sem precedentes e seus olhos refletirem noites sem dormir. Vieira teria de esperar Natan acordar e tentar tirar uma conclusão para a ficha policial e um parecer para a frenética mídia.
            - Senhora, não quero pressionar.
            - Márcia, por favor. – corrigiu.
            - Márcia, teremos de voltar aqui ao fim dos exames. Se for confirmado o problema do menino, poderemos até acionar a Saúde Pública para colaborar com o tratamento.
            Olhando-o seriamente, Márcia perguntou:
            - E se não for?
            Vieira não teve pena em falar prontamente. Pode-se até dizer que o costume adquirido em se relacionar com pessoas de má índole o deixara pouco sentimental:
            - Terei de leva-la à delegacia. Sinceramente, sen... Márcia, duvido que ele não tenha nada. Nenhuma criança saí matando recém-nascido por aí. A não ser...
            Com seu olhar, Márcia autorizou o sargento completar a frase, sabendo o que ele falaria.
            - ... ele esteja doente. Você sabe... É complicado. Podemos ajudar se estiver com problemas, mas se não tiver, alguém tem ser culpado. E esse alguém...
            Ouviram-se passos chegando à porta da sala.
            Santos abriu a porta aos batidos, que indicavam claramente a falta de paciência da pessoa do outro lado.
            - Terminou o interrogatório. – disse o médico.
            - A gente ainda não terminou. Espere mais alguns minutos – intimou Santos, bem ao seu lado.
            - Isso aqui não é uma delegacia. Devem esperar o filho da senhora acordar e gozar de uma certa saúde para completarem o trabalho de vocês. Demos muito tempo para perguntarem o necessário e o filho precisa da mãe.
            Vieira levantou-se contrariado e agradeceu Márcia, dando-lhe um abraço.
            - Também tenho filhos. Sei como se sente.
            Santos não se mexera. Comportava-se como um segurança particular na porta do quarto.
            O doutor esperava próximo à janela. Estava escurecendo e alguns postes clareavam dentro da sala com sua luz alaranjada.
            - Acenda a luz, por favor – pediu o médico para Santos, que abria a porta para se retirar.
            Ao terminar a despedida, o médico chegou-se à Márcia, tocou-lhe os ombros e disse em tom cordial:
            - Seu filho acordou.
            Vieira, estando no meio do quarto quando ia embora, ouviu e se virou:
-          O garoto acordou?
Aquele senhor de meia idade, cabelos brancos e exercendo quinze anos a profissão de médico, nunca vira com bons olhos aqueles homens de farda cheios de si. Aos oito anos, presenciara na praça de Porto Alegre no meio de uns fumantes, o seu irmão mais velho, acompanhado da namorada e de alguns amigos. O cheiro de cigarro era insuportável, mas amava profundamente seu brother. Eles sempre brincavam juntos, passeavam pelo shopping e iam ao cinema. Só não saía com ele nos fins de semana, quando ia com os amigos aos bares e para as boates. Mas em pouco tempo seu irmão conhecera uma moça no cinema na qual o levou para assistir “A era do gelo 4”, muito bonita e elegante. Chamava-se Helena. Morena, cabelos cacheados e olhos verdes. Mesmo durante o relacionamento, ainda freqüentava bares mas nunca voltou para as boates. Os dois sempre saíam juntos e ela não se importava em se divertir com os amigos de seu irmão.
Aquelas lembranças gravadas em seu subconsciente o faziam sonhar sempre. Naquele dia, na praça da cidade, vira ao longe seu irmão fumando junto com os colegas. Helena estava deitado no seu colo, com uma camiseta amarela e calça jeans desbotada. Ela bebia cerveja, pelo menos era o que parecia. Entusiasmado, o garoto correu para o encontrar. Queria abraça-lo e pedir para o rodopiar no ar, como ele sempre fazia quando os dois se encontravam no portão da casa.
Alguns cães ladravam ali perto e ele parou, com medo. Um comerciante gritou “Passa” e os cães correram cada qual para o lado inverso, desviando-se dos carros e das bicicletas.
Tornou a correr mas viu um movimento estranho perto do jardim. Os amigos de seu irmão corriam grama acima e uma pessoa estava deitada no chão, sendo espancada por policiais. Helena estava perto, berrando para que parassem mas seus gritos eram inaudíveis, pelo menos para eles. Alguns idosos comentavam a favor daquela violência, uns eram contra. Uns atletas passavam ao lado correndo com seus tênis brancos e camisetas suadas, fingindo não ver a covardia.
A criança traumatizou-se ao ver seu irmão sendo espancado em plena praça pública. O caso parou na justiça e, como sempre, os guardas continuaram com seu trabalho e imunes.
Só com seus quinze anos soubera que seu irmão fumava maconha na praça com seus amigos. Somente Helena abstinha-se. Ela não importava com o hábito do namorado. Sabia que ele fumava somente nos fins de semana, mas nunca dera um trago.
A polícia não poderia deixar maconheiros fumar em sociedade aberta. Isso era lógico, era o seu trabalho. Espancamento era uma coisa que ele não entendia, uma cena tão chocante. Não bastava chamar a atenção? Levar para a delegacia?
Seu irmão por sorte vivera. Tivera fraturas no braço e quebrara duas costelas. Casou-se com Helena, tem dois filhos e trabalha como administrador de empresas na DM Empreendimentos.
Mesmo depois de quarenta e um anos, ao ver um uniforme policial, lhe dava arrepios e uma vontade de fazer justiça com as próprias mãos para com qualquer soldado, como se todos tivessem culpa.
- Santos, vamos ao quarto do garoto agora.
O médico correu e se firmou frente ao policial.
- Quem você pensa que é? Qual é o seu nome? – perguntou Vieira, indignado com audácia do doutor.
- Eu sou um médico e me chamo Osíris. E digo que está mais do que na hora de irem embora. A visita acabou.
- Mas estamos trabalhando e precisamos ver o menino.
- Agora só a mãe pode vê-lo. Já disse que a polícia só voltará quando ele estiver em condições. Se derem licença...
Osíris abanou as duas mãos, pedindo para os policiais se retirassem.
-          Mas...
-          Nada de “mas”. Voltem outro dia.
Vieira suspirou e comandou a retirada para Santos.
- Nos veremos novamente, doutor.
- Com certeza – respondeu ele, cinicamente.
Márcia estava zonza. Uma discussão daquelas era a última coisa que queria ouvir. Seu dedo batia lentamente na mesa e seus dois pés estavam acuados por baixo da cadeira.
- Vamos ver o seu filho?
- Ele está acordado?
- Sim. E perguntou onde estava sua mãe.
Márcia levantou-se depressa e correu para a porta, caindo ao chão de lado, batendo com a cabeça.
Osíris correu para ela e tomou seu pulso.
- Você está bem?
            Atordoada, ela percebeu os sentidos voltando ao normal.
            - Agora estou. Só me ajude a caminhar até ao quarto do meu filho.
            - Sim.  Vamos até lá.
            O movimento do hospital era intenso. As macas rodavam os corredores, com pacientes enrolados em faixas e outros tomando soro. Alguns idosos passavam de cadeiras de rodas, dormindo. Adultos e jovens choravam em pé, com os rostos colados na parede. Uma senhora de cabelos grisalhos com a perna esquerda amputada se sustentava numa bengala nova, enquanto alguns adolescentes a acompanhavam por trás, conversando sobre o baile do fim de semana.
            Uma negra de uns setenta anos dormia num colchonete posto no chão, de uma espuma bem fina, clamando por médico e pelos seus filhos. Um médico tentava acalmar uma paciente com depressão na porta de um consultório, dizendo “Tudo vai ficar bem. É só tomar esse remédio pra tudo ficar bem”. Uma criança sentada no banco de pacientes colocava sorrateiramente a mão em sua genitália, fazendo movimentos obscenos, provocando a atenção de todos ao seu redor . Um homem, vestido com roupa de interno azulada e amarrada por trás, sem roupas íntimas, enfiou a mão por debaixo da roupa e pegando no pênis, se masturbava lentamente.
            Os enfermeiros correram até ele e o arrastaram para dentro.
A menina, puxada pelo cabelo por sua mãe, gritava e gargalhava com os tapas recebidos no braço. Muito nervosa, a menina virou-se para Márcia, olhou-a de cima a baixo como se sentisse superior a todos, bateu seus pés com força na pernas gordas de sua mãe e gritou bem ao seu ouvido:
 - PUTA GORDA!    
O barulho de um tapa no rosto ecoou pelo enorme corredor de espera.
Márcia, telespectadora de toda aquela trama, virou-se rapidamente, estupefata, e continuou seguindo, observando o médico à sua espera na porta do quarto de Natan.  
Na porta, Márcia chama o filho.
- Natan, mamãe está aqui. Como você está se sentindo.
Natan olhou para o médico, ignorando a presença da mãe e girou a cabeça no sentido contrário.
- Você está bem, querido?
            Doutor Osíris, percebendo o momento de intimidade, deixou os dois, fechando a porta do quarto, sem dizer palavra.
            - Como você está querido?
            Natan não respondia.
            Márcia sentara-se na cama próxima ao travesseiro, onde podia perceber as marcas roxas em seu pulso amarrado.
            - Mamãe está preocupada com você. Ficaremos um pouco aqui e depois voltaremos para casa, para brincar com seus primos. Não fique assim. Estaremos de volta pra casa em poucos dias.
            Suas pernas estavam marcadas por unhas. Com certeza, os médicos e enfermeiras tiveram de se esforçar muito para amarrá-lo.
Ver seu filho assim era difícil, muito difícil. Tinha ânsias de vômito e fortes dores de cabeça que iam e vinham, seus olhos estavam vermelhos e ardiam muito.
Uma lágrima caiu sobre o rosto de Natan. A única lágrima que lhe restava incorreu sobre as bochechas de seu filho, fazendo-o voltar seu rosto tristonho e emagrecido para olha-la ternamente.
 - O que eu tenho, mamãe? Porque me amarram? Isso... Tá me machucando .
Natan começou a se debater, puxando os braços para cima e as pernas para os lados. Ele gritava com uma voz estridente, fina, insuportável.
Márcia tentava segurá-lo, sendo em vão seu esforço.  Levara um soco bem no busto, derrubando-a de costas no chão.
Ignorando a dor intensa, ela pulou corajosamente sobre as pernas de seu filho e agarrou firmemente seus braços junto ao corpo e contra o colchão.
Natan ainda se debatera por alguns segundos, mas estancou inesperadamente.
Ofegante, Márcia nem sentira o suor correndo por entre suas axilas. Descansou ali mesmo, sentada sobre o corpo de Natan, aguardando a possibilidade de outra crise.
Saiu devagar da cama. Seu filho a fitava, com os olhos perdidos e corpo imóvel. Ainda tentara tirar suas mãos dando dois arrancos lateralmente. As pulseiras de couro eram muito fortes.
- Mamãe, estou com sede.
- Claro, filho. Irei pegar água.
Depois dessa crise, a única coisa que ele tem a dizer é “estou com sede”? Será se ele não se lembra de nada, nem do que fez com o bebê e nem de agora?
Márcia se recordou de uma vizinha na adolescência. Eram muito amigas: estudavam na mesma sala e saíam aos fins de semana, trocavam confidências.
Num certo sábado, compraram ingressos para assistir a sensação do momento. No cinema local, a fila era enorme e o cartaz “Romeu e Julieta” era iluminado por lâmpadas coloridas, iluminando a pequena rua e convidando a cidade para o filme . Leonard Whiting provocava suspiros nas moças, fazendo-as a ter os sonhos mais eróticos e extravagantes capazes para a imaginação da época.
Na fila que dobrava facilmente o quarteirão (lembrando a pequenez da rua), as tagarelas da cidade falavam alto, incomodando os moradores das casas. Alguns homens comiam amendoins torrados em açúcar, as mulheres geralmente preferiam algodão-doce, não excluindo algumas que entravam comendo maçã do amor, lambuzando os lábios de caldo vermelho.
Márcia e sua amiga chegavam ao guichê.
- Cuidado! – exclamou Marcia ao segurar a amiga, parecendo ter tropeçado numa coisa e sendo literalmente jogada ao chão.
Não suportou o seu peso. Janete caiu e sem ao menos ter batido com o corpo por terra, as convulsões começaram. A fila em instantes se desintegrou e rodeou as duas, mais por curiosidade que por socorro. Todos falavam alto, os baixinhos bisbilhotavam por cima do ombro dos mais altos enquanto outros aproveitaram o esvaziamento para serem os primeiros a entrar.
- Deixe-a assim. Se sentir crise por muito tempo, eu pego meu carro e a levamos para o hospital.
- Quem é você? - perguntou Márcia, apoiando a cabeça da amiga em seus braços, percebendo a presença do homem aos pés de Janete.
- Meu nome é Sandro. Sou médico. O melhor agora é esperar a crise passar e depois levá-la pra casa.
- Porque ela ficou assim? Estou tremendo de susto. Ela tem alguma coisa séria?
- Não é uma doença séria se for tratada devidamente. Pelos movimentos eu presumo que seja uma crise epilética. Ela tem de fazer exames. As crises costumam passar rápidas, mas é melhor esperarmos pra ver.
O médico conseguiu dispersar o povo, dizendo “Está tudo sob controle. Eu sou médico. Ela vai ficar boa”. Outros perguntavam porque ela tremia daquele jeito, e Sandro respondia: “É febre alta”.
               As pessoas entraram rápido no cinema, pois o filme havia começado. Passado três minutos, Janete acordou.
-Deus do céu! Finalmente!
-O que aconteceu? – acordou ela, vasculhando com os olhos estatelados ao redor, como se nunca estivesse passado por ali. -Porque estou deitada no chão?
Sentiu uma dormência na língua. Ao passar o dedo indicador, sentiu um arrepio de dor.
- Minha língua está doendo...
Tudo foi esclarecido mediante a consulta feita ao neurologista uma semana depois, após realização da eletroencefalografia. Segundo o médico, o epilético desmaiava por falta de oxigênio no cérebro. E, ao desmaiar, ele treme, perde a consciência e morde a língua com força, por isso a dor de Janete. E recomendou para que quando visse um epilético em crise, não tentasse abrir sua boca para ele não cortar a língua. Sugeriu esperar. Se tentássemos ajudar, poder-se-ia perder os dedos com a força da mandíbula do doente.
Com as recomendações, veio o tratamento. Janete tomava não se sabe se era um ou dois remédios por dia e nunca mais voltara a ter outra crise daquela.
Essa lembrança poderia ser uma solução para Márcia. Ela se voltou e olhou Natan deitado. “As crises parecem epiléticas”, pensou ela. Os movimentos dos braços e das pernas eram idênticos aos de Janete.
- Volto com a água agora, querido.
Da tranquilidade voltou à inquietação. “Epilepsia não muda o modo de ser de uma pessoa. Ou muda?”
Márcia sacudiu a cabeça e nem percebera o copo de água transbordando, caindo no chão encardido de poeira.
- Chiquinha, lave aqui também. Está empoeirado.
As faxineiras andavam com suas vassouras e baldes com rodinhas pelo hospital. Márcia olhou o cabelo daquela magricela agachada, lavando o chão próximo ao bebedouro com um rodo de cabo enferrujado e se lembrou da irmã. Mônica não ligara. Márcia pouco se importou se sua irmã estava ou não querendo notícias. O que importava para ela é a confiança em si mesma. Apesar dessa confiança desabar em dias difíceis, era construída toda manhã com muros maiores e mais fortificados do que aqueles outrora destruídos.
Pensar numa probabilidade de disritmia cerebral dava tranqüilidade à Márcia, apesar de ser uma conclusão meio estranha. Preferir uma doença a outra lhe dava um desconserto mental grande. Preferia muita saúde a qualquer infortúnio mas a realidade era aquela e torcia por algo mais brando.
Com o copo d’água na mão, ela chamava o filho com um tom médio na voz. Ele dormia novamente, com a respiração profunda, girando os olhos nervosamente por trás das pálpebras.
- Natan?
Ele acordou abruptamente, com os olhos distantes, pregados na mão com o copo de água.
- Obrigado.
Tomou toda a água num só trago, jogando o copo pelo chão. Parecia nervoso com alguma coisa. Márcia não o repreendeu, prestando atenção em seu comportamento, que porventura ora era estático, ora movia-se com fadiga.
-          Mamãe, quero sair daqui. Me tira dessa cama.
Com sofreguidão, Márcia acuara-se no canto do quarto, sentando-se  no chão, escondendo o rosto entre as pernas. Detestava admitir, mas não tinha ânimo para transmitir ao seu filho e as palavras sumiram de sua boca. Ficou ali, sem pensar, sem se mover, sem olhar para Natan no leito hospitalar.
Márcia ouviu uma voz rouca falando palavras ininteligíveis no quarto. Olhou lentamente para a TV, curiosa com o som de palavras misturadas. Era como uma daquelas salas de vendas de ações, com aqueles horríveis gritos, papéis passando de mão em mão, com muitos homens olhando uma tela com uns números que iam se modificando em minutos.
A televisão estava desligada. Márcia correu e encostou seu ouvido aos lábios de Natan, concluindo que as vozes não saíam de sua língua. Ele mexia o queixo paralelamente, transparecendo estar comendo algo duro.
Ela chegou ainda mais perto de sua boca que se abria lentamente e sentiu o hálito insosso do garoto,.
Márcia voltou a sentar-se na beira da cama, aguardando algum movimento ou algumas palavras. O remédio aplicado em sua veia fizera-o apagar, facilitando o trabalho dos médicos e enfermeiros de o amarrarem na cama. O efeito estava passando, mas Natan ainda sentia sono.
Ouvia-se a respiração de sua boca. Ela ia diminuindo até cessar, fazendo Márcia se assustar e tomar-lhe o pulso para confirmar as batidas do coração. Chegou novamente os ouvidos e ouviu sussurros bem baixos, praticamente inaudíveis.
- Natan, quer me falar alguma coisa? – perguntou Márcia, com um tom bem baixo, olhando-o nos olhos, incomodada com o mau cheiro do couro que amarrava seu filho.
- Mamãe...
- Diga, meu filho. Mamãe está aqui.
- Chega aqui bem perto. Quero te contar um segredo.
Márcia fitou o menino, desconfiada.
Um segredo?
- Vem aqui, mamãe. Quero te contar uma coisa antes de irmos embora.
- O que é? – perguntou ela, mansamente.
 - Tem que ser bem no ouvido, ninguém pode ouvir.
 - Mas não tem ninguém aqui.
- Vem, mamãe. Quero te contar uma coisa.
Admite-se o medo da Márcia com a intenção do filho querer lhe contar um segredo, de uma hora para outra. Teve medo dele, de seu próprio filho. Ele poderia morder sua orelha ou fazer outra coisa. Márcia nunca em sua vida pensava em desconfiar de alguém da família, ainda mais sangue de seu sangue.
Aproximou-se devagar de seus lábios. Tremia e à medida que se aproximava do rosto de Natan. Fechou os olhos.
- Natan, pelo amor de Deus, filho, tenha pena da mamãe...
Sentiu a respiração do garoto cessar ao chegar seu ouvido bem perto. Seus lábios beijaram seu rosto, sussurrando muito lentamente, pausando cada palavra, entoando-as como notas musicais:
- Fiquei sabendo da visita do papai. Ele me contou sua falta de cuidado comigo e sua irresponsabilidade por não saber lidar com crianças.
Márcia se levantaria assustada no momento, mas permaneceu com sua cabeça próxima a de seu filho. Não sentia tristeza. Sentia medo e bem no fundo, remorso por nunca cuidar de seu filho como deveria. Deveria ter sido mais firme, dito “não” mais vezes, forçado-o a comer coisas saudáveis, evitando assim sua estadia num hospital psiquiátrico e evitado a morte de um bebê. Sentia culpa: ela adoeceu seu filho; ela matou um recém-nascido.
Encostou-se no peito do menino e ouviu seu coração de criança. Será se o espírito de Marlon pairava sobre aquele quarto?
Não. Espíritos se vão e nunca voltam. O único ser metafísico presentificado entre os vivos é o espírito de Deus e de Cristo Senhor. Esse sim estava sempre no meio de todos, desde que o invocassem.
- Mãe... – continuou Natan. – vovô Antônio está aqui, conosco. Quer que eu lhe dê um recado?
Isso foi o bastante para Márcia se levantar aterrorizada. Tropeçou em seus próprios pés, caindo sobre um criado-mudo próximo à parede, derrubando talheres e copos, criando um estardalhaço no quarto.
Deitada e bufando como cachorro, ela grita com todo o ar de seus pulmões:
- SAIA DO MEU FILHO, SATANÁS! É CRISTO QUEM TE ORDENA!
Natan gargalhou e virou o rosto para o lado, voltando ao seu sono de rei.



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